Homilia de D. José Policarpo na Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria “O fruto mais precioso da encarnação do Verbo de Deus é o dom de um coração novo” 1. Na Solenidade da Conceição Imaculada de Maria, celebramos o mais precioso fruto da encarnação do Verbo de Deus: o dom de um “coração novo”, mistério da graça concebida como força criadora de Deus, capaz de reconduzir a criação à sua definitiva plenitude. Essa é a novidade cristã, alicerçada na ressurreição de Cristo. Na Carta aos Efésios, São Paulo é claro ao falar da dignidade cristã: em Cristo, “Deus escolheu-nos, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na Sua presença. Ele nos predestinou, conforme a benevolência da Sua vontade, a fim de sermos Seus filhos adoptivos, por Jesus Cristo, para louvor da Sua glória e da graça que derramou sobre nós, por Seu amado Filho” (Efes. 1,3-6). Maria é a primeira que foi chamada para ser santa e irrepreensível, na presença do Senhor, pela graça de Jesus Cristo. A ordem da graça é o segundo capítulo da criação e tem no centro Jesus Cristo. Só Ele é verdadeiramente graça e bênção, pois aprouve a Deus Pai refazer todas as coisas por meio d’Ele. A plenitude de graça de Maria reflecte a plenitude de Cristo, fonte única da graça da salvação. 2. A plenitude de graça de Maria é o primeiro fruto da encarnação do Verbo de Deus, que há-de acontecer no seu seio maternal, e realiza-se com aquela plenitude que a comunidade dos redimidos só atingirá no Céu. No realismo da redenção e do seu acontecer progressivo na humanidade pecadora, Maria, a Imaculada desde o primeiro momento da existência, é o anúncio da perfeição escatológica para toda a Igreja. Ela torna-se, assim, no ícone do tempo definitivo, objectivação de todas as promessas e fundamento real da esperança. Nela escutamos, continuamente, o chamamento à santidade, na jubilosa esperança de termos, um dia, um coração imaculado, triunfo da graça de Cristo em cada um de nós. Essa longa caminhada do pecado à graça, do coração duro a um coração capaz do amor verdadeiro, fazemo-la com Cristo, como seus discípulos. E nessa longa peregrinação vai connosco Maria como farol que aponta a meta, sendo connosco aquilo que, com ela, desejamos vir a ser. Neste seguimento de Jesus Cristo, ela é a primeira discípula, e foi-o, por vontade do Verbo, que há-de ser seu Filho, desde o primeiro momento. É essa atitude de discípula que faz ressaltar o seu Coração Imaculado, capaz de acolher o amor de Deus e de se abandonar totalmente ao Seu desígnio. A sua própria maternidade, ponto alto da sua obediência e abandono do desígnio de Deus, enquadra-se na sua atitude de discípula. Santo Agostinho escreveu de Maria: “Porventura não fez a vontade do Pai a Virgem Maria, que acreditou pela fé e concebeu pela fé, que foi escolhida para que dela nascesse a salvação entre os homens, e que foi criada por Cristo antes de Cristo ter sido criado nela? Maria cumpriu, e cumpriu perfeitamente, a vontade do Pai; por isso, Maria tem mais mérito por ter sido discípula de Cristo do que por ter sido Mãe de Cristo” (PL. 46,937-938). Segundo estas palavras do grande Doutor, ser discípula era vocação, ser Mãe do Verbo de Deus, foi missão, tornada possível pela fidelidade da discípula. Na nossa caminhada de discípulos, peregrinação da nossa fidelidade, é consolador termos Maria como companheira, oferecendo-nos no seu Coração Imaculado o sinal atraente do nosso desejo e da nossa meta. Ela nos ampara na fidelidade à nossa vocação de filhos de Deus, pois só assim, seremos capazes e dignos da missão que Deus confiou a cada um de nós. 3. Esta nossa caminhada para a graça está ao nosso alcance porque Cristo venceu o pecado, tornando possível que cada um de nós vença o pecado no seu coração. A grande vitória é de Jesus Cristo, que teve a Sua primeira manifestação plena na Conceição Imaculada de Maria. Esta vitória foi anunciada logo no início. A narração do primeiro pecado completa-se no anúncio da vitória de Cristo sobre o pecado: a descendência da mulher esmagará a cabeça da serpente enganadora. O texto sagrado só referiu o drama do pecado, porque podia anunciar a esperança da vitória sobre o pecado. De outro modo seria reconhecer o falhanço da criação. Mas se a vitória é do Filho da Mulher, esta, a Nova Eva, entra nessa luta e participa do triunfo da vitória. Foi dito à serpente, símbolo do demónio: “Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher (…) e tu a atingirás no calcanhar” (Gen. 3, 15). A mulher que, na sua fraqueza, aparece como aliada da serpente no drama do pecado, será a sua grande inimiga na luta da redenção. E este dilema traça o quadro do papel da mulher, em cada tempo e circunstância. A sua dignidade e o seu papel na história afirma-se na escolha por lutar contra o mal; caso contrário será a sua primeira vítima. Aceitando a sua parte de sofrimento e incompreensão nesta luta, porque a serpente mordê-la-á no calcanhar, símbolo da sua capacidade de manter-se corajosamente de pé, ela será protagonista da vitória do bem. Só Deus conhece a medida em que a humanidade, nas suas conquistas positivas, as deve à coragem e nobreza das mulheres que se mantêm firmes, de pé, contra ventos e marés, protagonistas da luta pelo bem. Em Maria contemplamos a força de um Coração Imaculado; esse coração é um coração de mulher. Em Fátima, Nossa Senhora reconhece a força do seu Coração Imaculado na luta contra o pecado: “No fim, o meu Imaculado Coração triunfará”. Nessa luta, todos os corações puros, de modo especial os corações de mulher, participam dessa força transformadora. 4. Mas onde reside a força de um coração puro, “um coração novo”, na linguagem dos Profetas? Antes de mais, porque são capazes de intimidade com Deus: acolher o Seu amor, escutar a Sua palavra, abandonar-se à Sua vontade. A intimidade com Deus exige a pureza do coração. É por isso que ela é progressiva, porque a transformação do nosso coração é lenta e dolorosa. Os que deixaram manchar o seu coração pela impureza do pecado, são incapazes de uma real intimidade com Deus. Ou deixam de rezar ou as suas preces ficam limitadas ao imediato da pequenez humana, das necessidades, das dúvidas, que põem Deus ao serviço do homem. A força dos corações puros reside aí: eles são capazes de envolver a humanidade no insondável mistério do amor divino. Neles ganha realismo existencial a realeza de Deus e o triunfo do Reinado do Seu Filho, Jesus Cristo. Hoje, nesta celebração, peçamos fervorosamente a Deus, através da Mulher Imaculada, que Ele nos dê o dom de um “coração novo”, que significa a vitória sobre o pecado pessoal e a luta decisiva contra a deriva de valores e perspectivas, no mundo em que vivemos. Que Ele preserve puro o coração das nossas crianças, dos nossos jovens, dos esposos, das mães, que podem tocar na maternidade a pureza da vida. Que nos dê a todos coragem para lutar, porque é de combate que se trata. Vencerão os que mantiverem corajosamente puro o seu coração. D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa