Padre Tiago Alves, Diocese de Bragança-Miranda
Este é um título que sai caro se, por falta de elevação de espírito, não for lido com uma certa serenidade de coração e à lareira de um pensamento que não se deixa dobrar pelo “politicamente correto”, no qual “tudo se pode dizer”, mas com o mesmo não surpreendente resultado de “pouco do que se diz se concretiza”. Não é menos desafiante, a par do que desejamos expor, a belíssima expressão de Timothy Radcliffe: “para uns é o medo da mudança e, para outros, o medo de que nada mude”.
Enquanto, não poucos, apregoam que estamos num tempo em que “já não há os valores que havia”, creio ser melhor pensar, e, só depois dizer, se for útil, que estamos num tempo em que aquilo que considerávamos ser propriedade desses “valores”, que aqueciam e moldavam a partir de dentro, desde a perspetiva das relações humanas, da casa, da família, do trabalho, hoje foram encostados nos porões distorcidos de uma vida de plásticas e substituídos por uma modalidade de imperialismo cultural – a eterna juventude –, que queima e deforma a partir de fora.
Nesta imagem da eterna juventude que coxeia, ou, ao jeito dos escritores Edgar Cabanas e Eva Illouz, da exigência da ditadura da felicidade, que é vasta, desejamos neste artigo, não apenas manifestar a preocupação de como aqueles que já nada produzem (em questões laborais), ou carregam a marca da idade que não lhes permite mastigar as modas, são tantas vezes e de tantos modos considerados inúteis, e por isso, encostados em suas casas ou em uma IPSS, instituições estas que passaram, por quem olha de fora, a ser retratadas como “cheias”, partindo de um ponto de vista económico (a pessoa pelo que tem), e poucas vezes “preenchidas”, que manifesta dignidade humana (a pessoa pelo que é). Mas a par desses primeiros, não é menos importante e imperativo considerar uns outros segundos, isto é, os tantos homens e mulheres que, esgotados pelo labirinto das suas vidas corridas, devido ao excesso de atividades e compromissos, e não poucas vezes da exigência de atingir metas, se ocupam de cuidar daqueles, ou pelo menos tentar.
Assim, importa não apenas vislumbrar o momento em que chegará o tempo da inutilidade, enquanto pessoa-(des)cuidada, no seu outono, que já não produz e que, além da muita medicação, já pouco consome às refeições, mas também descortinar o estado da pessoa-cuidador enquanto pessoa, ainda em primavera, esgotada pelo abismo da exigência laboral e social.
Quem cuidará de nós quando não formos úteis?
Lia um livro há pouco tempo, O Burnout – entregar-se e não ser consumido pela exaustão e stresse, da coordenação de Miguel Amaral e Fábio Guimarães, do qual permitam que cite alguns excertos: «o Senhor está bem atento ao cansaço dos seus discípulos missionários! Este cansaço pode apoderar-se não só dos padres, como dos variados servidores pastorais das nossas comunidades ou daqueles que fazem da ajuda e do cuidado dos outros a sua principal ocupação de vida». Estendo este pensamento a esses homens e mulheres, que nas aldeias cuidam dos seus pais e outros, mas também para aqueles que, em instituições de saúde, se ocupam de dar de si a todos quantos ali recorrem, chegando e nelas ficando.
Hoje fala-se muito da Síndrome de Burnout, que literalmente, significa, “queimar-se”, sentir-se em curto-circuito, como uma espécie de “terra queimada”, esvaziada de energia e potencialidade criativa, sem mais nada para dar. Se na Igreja as causas da fadiga podem ser diversas (cf. Papa Francisco, Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 82): «uns por idealizarem projetos irrealizáveis e não viverem de bom grado o que se pode razoavelmente fazer; outros, por não aceitarem a custosa evolução dos processos e quererem que tudo caia do Céu; outros, por se agarrarem a sonhos de sucesso cultivados apenas pela sua vaidade; outros ainda, por não saberem esperar e quererem dominar o ritmo da vida». No mundo das instituições sanitárias e de cuidados, as situações fatídicas com as quais lidam diariamente, não poucas vezes levam a que muitos cuidadores se afundem nesse esgotamento emocional, nessa tão frágil síndrome do “bom-samaritano desiludido”. Quantos profissionais de saúde e cuidadores podemos ver aqui espelhados!
Na verdade, segundo especialistas, a referida Síndrome de Burnout acontece na medida em que a pessoa, que se dá e cuida dos outros, põe, ou exigem que ponha, o acento tónico no sucesso e no reconhecimento, mas descuida o mais importante: o sentido, o valor e o amor da sua entrega, e diríamos do cuidado de si mesmo. Precisamos de aprender a amar-nos, sabendo que «aquilo que não se ama, cansa de forma má; e, com o passar do tempo, cansa de forma pior» (Papa Francisco, Homilia na Missa Crismal 2015).
Na verdade, no mundo dos Hospitais e das IPSS, o problema das inúmeras atividades mal vividas, sem as motivações adequadas, sem uma espiritualidade que preencha a ação e a torne desejável, faz com que essa obrigação profissional canse mais do que o razoável e faça adoecer (cf. EG 82).
É por isso que Jesus, ao acolher os seus discípulos missionários não quer saber, em primeiro lugar, dos resultados obtidos, mas sobretudo do estado anímico e espiritual de cada um. É a pessoa que lhe interessa e não o fruto ou o produto do seu trabalho. Por isso, convida os seus discípulos missionários a descansar n’Ele, a fixarem-Se n’Ele, para não ficarem obcecados pelos êxitos ou fracassos. Há, na verdade, um cansaço mau e doentio, de que é preciso tratar-se, pedir ajuda, sem fugas nem rodeios. Mas há também um cansaço bom, que é precioso aos olhos de Jesus, que é como o incenso que sobe silenciosamente ao Céu. Neste caso, o nosso cansaço eleva-se diretamente ao coração de Jesus, que nos acolhe e faz levantar o ânimo, reiterando o convite a cada um: “Vinde comigo para um lugar isolado e descansai um pouco” (Mc 6,31)!
Se estamos mortos de cansaço, prostremo-nos então em adoração e digamos ao Senhor: “Senhor, por hoje basta!”. O segredo da fecundidade do nosso serviço e da nossa entrega é também o modo como sabemos repousar no Senhor, passar-lhe “a bata do trabalho”, rendermo-nos nos nossos limites, pormo-nos nas Suas mãos e ficarmos sossegados no Seu colo. Repousemos no Senhor! A entrada é grátis!” (um pensamento brilhante do Sr. Pe. Gonçalo).
Façamos por descansar e, ainda que por momentos nos sintamos inúteis para o mundo, não esqueçamos: temos um Deus que ama os inúteis e está disposto a acolhê-los. Feliz daquele que na sua vida tem um Deus que o/a olha com comoção, isto é que sente desde dentro, convidando a “retirar-se e a descansar um pouco”. É também isto que tantas vezes nos faz falta: aprender a retirar-nos e a descansar, pois quando nos retiramos e descansamos, não por luxo mas porque se trata de uma exigência de saúde, então estamos a dar passos ao encontro de Deus, que aceita e abraça a nossa inutilidade por falta de nos retirarmos do mundo e traçarmos caminhos que nos conduzam ao céu.
Pe. Tiago Alves
Pároco e Capelão da Unidade Hospitalar de Mirandela.