Não faltam sítios para percorrer nesta Quaresma. Contagem decrescente para a Páscoa, corresponde a um itinerário pessoal e comunitário que se assemelha ao confronto da construção vertical com o fio do prumo, ou ao olhar da bússola (ou GPS) em qualquer atalho, ou ao desfazer-se do acessório para alcançar o principal, ou ainda à remoção de estorvos para melhor ver a luz da plenitude, razão e atracção última de qualquer ser que tem consciência do limite e, por isso, nunca deixa de tecer interiormente o desiderato do ilimitado. Tudo isto se pode instalar no salão de vaidades dos nossos questionamentos metafísicos ou religiosos. Mas adquire verdade quando desce ao concreto das nossas vidas e das comunidades que constituímos. Pensando no momento que atravessamos, captamos alguns acenos de esperança à mistura com muitos motivos de apreensão. São visíveis as situações de desemprego, de famílias endividadas, de gente sem abrigo, de marginalizados compulsivos, de crianças e idosos atingidos pela violência ou pelo desamor, de desigualdades flagrantes que continuam a gritar com pouca gente disposta a ouvir, de vazios clamorosos que enchem o real e o imaginário de tantas pessoas, de alimentos superabundantes de trivialidade medíocre a ecoar pelas praças públicas da informação e do divertimento, de discursos ocos de feirantes de política, cultura e religião. E da natureza que por vezes parece mais madrasta que mãe. De tudo isto se reveste o nosso planeta, rural ou urbano, numa aldeia alargada que a todos envolve e onde não se sente chover em abundância o amor e o apreço pela vida. Todo este peregrinar se envolve no tempo de Quaresma. Para não falar da descida à obscuridade dos nossos redutos íntimos e indizíveis, povoados de vícios e erros ardilosamente reciclados. Não faltam, aos indivíduos e comunidades, temas de conversão, muito para além dos discursos morais do abstracto ou das elucubrações que iludem a realidade para nunca a transformar. E a visita aos ascetas e místicos, monges e anacoretas e, no dizer de Cristina Campo, “ao lugar onde ecoa íntegra a beleza, desde o metal do sino ao grão de trigo”. A Quaresma não tem o exclusivo das grandes viragens da vida. Mas é uma hora invulgar de escuta dos sinais do tempo e do apelo que Deus nunca cessa de lançar a cada coração. Em constante desassossego até que O alcance. António Rego