O desassossego

João Aguiar Campos, Secretariado Nacional das Comunicações Sociais

Perguntaram-me, há dias, por ocasião do primeiro aniversário do início do pontificado do papa Francisco, se me sinto agitado pelo seu desassossego. Inicialmente fiz de conta que não percebia a pertinência da pergunta; mas depois dei comigo a enumerar os verbos que vêm marcado as suas intervenções — sair, partir, primeirear, procurar, ouvir, acompanhar; e, sim — disse para mim mesmo — estes verbos desinstalam.

Não sou dos que pensam que tudo está a começar agora. Mas não consigo negar que íamos apresentando alguns sintomas de haver sido afectados por uma modorra de pós-almoço, com a rua a ser vista a partir de uma sombra e pelo canto de pálpebras mal abertas. Até a nossa linguagem ganhara as formas redondas e tranquilas do gerúndio: vamos andando, vamos fazendo, isto vai indo!…

Com estes pensamentos à flor da pele, quis Deus Nosso Senhor (que no acaso não acredito) que, em recente manhã de meditação, fosse ter com Marcos 1, 21-39. Li o texto. Rezei o texto. No fim, anotei, à laia de pessoal memória futura, as linhas que agora partilho.

….

Correra bem a jornada de Cafarnaum: na sinagoga maravilharam-se com o seu ensinamento, o espírito maligno foi obrigado a deixar o homem que aprisionava, a sogra de Pedro recuperou a horas da merenda e muitos doentes e possessos foram igualmente curados. Além disso, as pessoas queriam mais, muito mais – tal e qual sonhassem fazer da terra o centro da curiosidade turística dos vizinhos. Os próprios discípulos estavam encantados com a sua provável condição de guias e porta de acesso ao Mestre. Revelaram-se, por isso, impertinentes: «Onde te meteste, que todos te procuram?»

Paro a constatar como são tão amorosamente humanos estes queridos discípulos!…Ai como os compreendo, se bem os imagino a pensarem em estabelecer-se, em sossegar e usufruir da boa vontade e admiração respiradas ao seu redor.

Convenhamos que, pelo descrito, em Cafarnaum se estava mesmo bem!… Mas não se tratava só de aproveitar o clima positivo; haveria também – piedosa desculpa? — que retribuir a hospitalidade!…

A ordem para pegar nas trouxas e partir, a fim de percorrer aldeias, deve ter-lhes soado, por isso, estranha; muito estranha mesmo. Ainda para mais, apresentada como uma vocação: «foi para isso que vim».

Releio, pela terceira vez o texto e procuro a luz: o desassossego é estranho se não se percebe o amor que o motiva; o desprendimento é estranho, se de administradores passamos a donos; partir é estranho se habitamos num sítio, em vez de morarmos na voz que nos chama…

Enviar e deslocalizar parece-me fácil. Difícil é ir e desprender-me; difícil é passar de sinaleiro a condutor e continuar a respeitar todas as regras dos cruzamentos e entroncamentos; difícil é admitir que sou destinatário da mensagem e não simplesmente seu circunstancial porta-voz…

Seja então bem-vindo o desassossego doutras aldeias!…

João Aguiar Campos

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