António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
O “Day after” é o “dia depois”. E o “dia depois” da Jornada Mundial da Juventude de 2023 [JMJ 2023] são dias, meses e anos. São o futuro. Já foram proliferando por aí textos, e bons textos, sobre o problema do “dia depois”. Melhor: sobre a problemática, porque mais do que um problema estaremos perante uma problemática, um nó de problemas de superação pouco fácil.
Lisboa, «cidade do encontro que abraça vários povos e culturas», «cidade do oceano» a lembrar «a importância de conceber as fronteiras, não como limites que separam, mas como zonas de contacto», transformou-se em «capital do mundo», «capital do futuro» e «cidade da esperança», nas palavras do Papa Francisco no Centro Cultural de Belém no encontro com as Autoridades, a Sociedade Civil e o Corpo Diplomático, no dia 2 de Agosto, num discurso cheio de referências a figuras marcantes da nossa cultura, de Luís de Camões a José Saramago. E os ouvintes aplaudiram. Certamente cada um com as suas razões íntimas, mas a verdade é que aplaudiram. Por cortesia ou por convicção, por patriotismo ou inspirados pela força da fé.
As expressões «capital do mundo», «capital do futuro» e «cidade da esperança» aplicadas a Lisboa, ditas no Centro Cultural de Belém, são bonitas de dizer, possuem sabor poético e são agradáveis de ouvir, como será agradável um passeio de barco «sem alfândega» nas águas tranquilas do Tejo de que se alimentaram as musas de Camões. Elas apontam para uma pauta onde se encontra escrita a música de futuro. E «todos, todos, todos» são convidados lê-la, a interpretá-la e a executá-la com o discernimento que a fé sincera inspira. Cada um como é e com elementos instrumentais emergentes, consciente de que o caminho é orquestral que continuamente exige exercício e ensaios até ao concerto final.
Desde o início do mês de Agosto há um intemporal “day after”, instrumentos a criar e exercitar e uma orquestra que importa afinar e potenciar. Sem medo, diz, reiteradamente, o mensageiro vestido de branco vindo de Roma nas asas mecânicas de um avião trazendo com ele outras asas, asas brancas como as dos anjos para ensinar a voar. O incita o voo, sem medo.
É com o «Não tenhais medo» que o Papa Francisco termina as quatro intervenções realizadas perante aqueles milhares de jovens. No Parque Eduardo VII são os discursos pronunciados na cerimónia de acolhimento e na Via-Sacra com os jovens; no Parque do Tejo é o discurso da Vigília com os jovens e a homilia da Santa Missa. Sempre o Papa Francisco termina com o apelo reiterado: «Não tenhais medo».
Na Universidade Católica, desafiando os ouvintes a «procurar e arriscar», afirma que «Não devemos ter medo de nos sentir inquietos» para logo a seguir acrescentar: «tende a coragem de substituir os medos pelos sonhos: substituí os medos pelos sonhos, não sejais administradores de medos, mas empreendedores de sonhos!»
Mas não só nas mensagens dirigidas aos jovens. Na homilia feita no Mosteiro dos Jerónimos, nas vésperas cantadas com os Bispos, os Sacerdotes, os Diáconos, os Consagrados, as Consagradas, os Seminaristas e os Agentes de Pastoral, o Papa Francisco utiliza por quatro vezes a expressão «Não tenhais medo». Portanto o apelo para que se afaste o medo não é só dirigido aos jovens entusiastas ali presentes, acompanhados com bispos e sacerdotes dos seus países. É dirigido a toda a Igreja.
«Medo» é uma das palavras mais vezes repetidas pelo Santo Padre, desde o primeiro ao último dia. Porque será?
Pensando bem, não faltarão razões naturais para se ter medo, neste mundo perigoso e de incerteza onde não faltam perigos e ameaças, mundiais, regionais, nacionais e locais. E já de pouco ou nada serve dizer que as crises, económicas, políticas, morais e religiosas sempre existiram e que fazem parte do desenvolvimento da Humanidade. Agravadas com a mundialização. agora espreita o medo da guerra, como espreitam o medo de colapso climático, o medo das migrações e o medo da inteligência artificial; espreita o medo do desemprego e da habitação condigna, como espreita o medo das epidemias e o medo da subnutrição e da fome, como espreita o medo de gerar filhos. O medo. Ele parece disseminar-se como pandemia incontrolável, sendo que em muitas regiões do mundo parece fazer já parte do ar que se respira.
Como teriam ouvido o grito «não tenhais medo», tantas vezes repetido pelo Papa Francisco, aqueles jovens, sacerdotes e bispos provenientes de países em guerra ou onde o Cristianismo é mal tolerado se é que não é mesmo perseguido? Corajosamente e com a força da fé que os trouxe a Lisboa, terão batido palmas ao homem vestido de branco e de caridade que incita à construção do futuro com esperança, mas dos seus olhos terão corrido lágrimas amargas choradas também, lá longe, no interior das suas comunidades. Para estes crentes com terríveis problemas nos seus países, Lisboa, «capital do mundo» a «capital do futuro» e «cidade da esperança», poderá ter sido também a capital da fortificação da fé.
Num mundo incerto nada parece certo. Será certo, todavia, o aparecimento de profetas da desgraça a recorrerem a tácticas do medo explorando até à exaustão a fragilidade dos humanos. E eles andam por aí. Na política e também na comunidade dos crentes. E na Igreja. Porque também há possibilidade de medos em comunidades cristãs e também andam por aí profetas da desgraça a anunciar catástrofes para a Igreja que se encontra a caminho, e em força, com o aproximar da abertura da sessão sinodal marcada para 4 de Outubro. Porque, todos o vamos sabendo, há sectores na Igreja que têm visto o processo sinodal lançado pelo Papa Francisco como uma séria ameaça para a vida da Igreja.
Não poderei saber com certeza, mas creio que aquele grito papal «não tenhais medo», tantas vezes repetido e conjugado com aquele vincado «todos, todos, todos», será uma expressão da importância de redescobrir, com fé e esperança, a sinodalidade da Igreja nos tempos incertos que vivemos onde não faltam razões para possíveis medos.
Curiosamente, ou talvez não, das dez perguntas feitas ao Papa no dia 4 de Setembro quando regressava da viagem apostólica à Mongólia, três foram sobre o Sínodo. E fica a pergunta: curiosidade jornalística ou preocupações de outra ordem? Deixo ao leitor algumas das frases pronunciadas por Francisco no interior do avião: «o Sínodo é diálogo, entre os batizados, entre os membros da Igreja, sobre a vida da Igreja, sobre o diálogo com o mundo, sobre os problemas que afetam a humanidade hoje». E, de modo mais radical acrescenta: «quando se pensa em seguir um caminho ideológico, o Sínodo termina.» Não – todos os sabemos – o Cristianismo não é uma ideologia, mas as ideologias, como sempre, não deixarão de o pressionar. Particularmente quando se adensa o caminho sinodal.
Termino por onde comecei. O “Day after” da Jornada Mundial da Juventude de 2023 [JMJ 2023] são dias, meses e anos. São promessa de futuro, exorcizando os medos e mobilizando diálogos de fé e com fé.
Guarda, 7 de Setembro de 2023
António Salvado Morgado
morgado.salvado@gmail.com