O culto ao Senhor Santo Cristo

Piedade Lalanda, Diocese de Angra

Foto: Igreja Açores

Poucas devoções nos Açores congregam tantas pessoas como o culto ao Senhor Santo Cristo. Esta tradição remonta ao século XVII e nasceu num convento, da relação de uma freira, Madre Teresa, com a imagem do Cristo, humilhado, flagelado e coroado de espinhos, que retrata o momento em que foi julgado, por pregar um reino de Amor e Perdão.  Talvez seja esta humanidade de Cristo, que leva muitos a se identificarem com o sofrimento representado, particularmente nos olhos, que o artista tão bem soube pintar.

A imagem do Senhor Santo Cristo permanece na capela do convento da Esperança, em Ponta Delgada, há mais de três séculos, mas está presente nas casas de muitos, em “quadros/registos”, pequenas estatuetas, pagelas, medalhas e outras representações.

Apesar de só sair à rua uma vez no ano, muitos acorrem ao santuário, quando estão aflitos, por causa de uma doença ou dificuldade. Há mesmo quem “fale” com o Senhor, diante das portas fechadas do templo. Como um amigo ou confessor, o Sr. Santo Cristo dos Milagres entrou na vida dos açorianos, porque representa a humanidade de Deus.

Como em muitas outras tradições, o risco da religiosidade popular está no esvaziar a prática religiosa da sua componente espiritual; mantendo-se os rituais, perde-se o seu significado.

As festas do Senhor Santo Cristo, como muitas outras, não são apenas um momento alto do calendário religioso açoriano, mas são, para a cidade de Ponta Delgada, ocasião de convívio, reencontro de familiares, muitos vindos dos países da diáspora açoriana. É um fenómeno cultural enraizado, que alimenta a saudade e reatualiza a pertença identitária. O coração bate mais forte e as lágrimas enchem os olhos, quando a imagem passa e se ouvem os primeiros acordes do hino do Sr. Santo Cristo, interpretados repetidamente pelas bandas filarmónicas da ilha. Relembram-se memórias de infância, tempos em que se vendiam brinquedos de madeira, loucinhas de barro em miniatura e galinhos de açúcar, hoje substituídos por vendedores de balões e comida “de rua”.

Esta é uma festa cuja componente religiosa é, desde há muito, gerida por uma irmandade. Apesar desta continuidade, a organização da festa tem gerado controvérsia, porque o modelo tradicional tem sido alterado, quase todos os anos. Os fenómenos culturais, religiosos ou profanos, são Património de um povo, logo, não pertencem a nenhuma geração, nem organização. Constituem uma herança cultural que é de todos e, talvez por isso, nem sempre as mudanças são bem aceites por quem é apenas “povo”, que vive e sente a tradição como sua.

À semelhança de outras festividades, poderia ser adequado pensar na criação de uma “comissão de festas”, que assegurasse a organização da componente “profana”, onde pudessem estar representados o poder local, regional e, sobretudo, a comunidade.

O culto do Senhor Santo Cristo gerou, na ilha de São Miguel, um movimento similar ao culto de Fátima, mas não podemos esquecer que o Santuário da Esperança, onde a imagem se encontra, junto ao Campo de São Francisco, integra a malha urbana da cidade e faz parte do quotidiano das pessoas ao longo do ano.

Os tempos mudaram, mas este culto ao Senhor dos Milagres permanece, inclusive em outras ilhas açorianas, como Santa Maria e Graciosa. Porquê? Porque as dores humanas nunca findam; as doenças com prognóstico reservado, a toxicodependência de um/a filho/a, a perda de um familiar ou a emigração, continuam a marcar a vida das pessoas e, sobretudo, geram angústia, porque há momentos na vida em que se “perde o rumo” e as “razões de viver”.

Naquele olhar, que se alegra ou entristece com quem o olha, é possível reencontrar a esperança, olhar para dentro e ouvir a voz de Deus; agarrar uma réstia ou centelha de luz e voltar a acreditar que a felicidade é possível, mesmo quando se vivem momentos de sofrimento.

Todos os anos, milhares de pessoas percorrem o Campo de São Francisco ou as ruas de Ponta Delgada, atrás do andor, algumas descalças ou carregando círios. Cada uma das “promessas”, como são designadas, é uma pessoa que carrega uma história de dor ou gratidão.

A essência do culto ao Senhor Santo Cristo é um cristal de fé, que está para além da imagem e mantém as pessoas ligadas ao Deus de Amor, que todos acolhe, na sua fragilidade humana.

 

 

 

 

27 de maio 2023

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Agência ECCLESIA

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