Antonino Dias, Bispo de Portalegre-Castelo Branco
Dêmos azo à fantasia. Imaginem dois bebés, gémeos. Vivem, convivem, crescem juntos no ventre materno. O seu mundo é pequenino e apertado, a merecer, da sua parte, de quando em vez, alguns protestos de sabor sindical. Protestos que a mãe acolhe com muita ternura e de coração a sorrir. Eles, porém, não conhecem outro mundo nem outro modo de viver e estar. É possível que, intrigados, escancarem bem as pálpebras e estiquem os ouvidos para, no silêncio da sua curiosidade, captarem os estranhos sons que lhes chegam do outro mundo: barulhos, linguagem, conversas, músicas, gritos, latidos, pios, mios…
Seja como for, não conhecem, de facto, este cosmos que nós habitamos. Nem tampouco sabem ou imaginam que este mundo se pode pisar, que é cheio de beleza e encanto, de vida muito variada e facetada, de sonhos e de liberdade criativa no bem e no mal.
Já adultos, nesse seu grande e pequenino universo, os gémeos chegam a ‘velhos’, isto é, esgota-se o tempo de estarem no ventre da mãe. Um deles, porém, tal como acontece por cá, acaba por chegar mais cedo a essa tal ‘velhice’ e tem de sumir dali. Queira ou não queira, é o ritmo normal da vida ao qual ninguém se pode opor. E lá viaja ele, com armas e bagagens, numa espécie de salto no escuro, para entrar nesse outro mundo que ignora, mas logo o deixa surpreendido com as suas maravilhas e potencialidades que começa a descobrir e a disfrutar.
O gémeo que ficou atrás, fica triste, com certeza. O irmão partiu, não sabe porquê nem para onde nem que sorte será a dele. Sozinho e triste, não tem vontade de abrir a gaveta da escrivaninha e olhar o testamento do irmão, não sabe como irá ser o agora da sua vida, não tem com quem conversar, conviver, protestar… Os instantes em que ele fica sozinho, mesmo que possam ser muito breves, devem-lhe parecer uma eternidade. São tempos tristes, difíceis de ultrapassar, talvez agravados por ouvir os gritos de dor da mãe, ou o choro do irmão nessa experiência catártica de lavar sentimentos. Entretanto, acaba também ele por atingir a sua ‘velhice’, tendo de passar por esse transe nem que seja ‘com o chapéu na mão, semelhante a um cabaz de cavacas das Caldas’, usando a terminologia de Camilo. Mas, ó maravilha!, eis que sente a felicidade de encontrar outro mundo e outra vida, com a alegre surpresa de abraçar o seu irmão.
Ora, nós também vivemos no ventre da terra-mãe, bem apertadinhos e sofridos. Cada um sabe onde é que lhe aperta o sapato. Vivemos, convivemos, protestamos, reivindicamos, trabalhamos, sofremos, pontapeamos, chegamos a velhos e também partimos. E porque ninguém pode, na verdade, travar os ritmos da vida, assim como a criança tem de partir do ventre da sua mãe, também nós, quando a ampulheta da vida indicar o limite do nosso tempo, temos de fazer a trouxa e abalar deste ventre da mãe-terra. Os mais próximos também ficam tristes, choram, manifestam dor, sofrem. Mas, tal como a criança encontra uma nova vida, o mesmo acontece a quem morre. Se a criança, mesmo que suspeitasse que o houvesse, ignorava completamente este mundo que encontrou, pois ninguém lho pôde mostrar claramente nem ela o experimentou, o mesmo não acontece com os que de entre nós partem desta vida. Nós temos a certeza de que vamos ao encontro de outra, em continuidade desta. Uma vida que nos foi revelada pelo Espírito que vem de Deus, a qual, embora se possa começar a viver já neste mundo, só nos será revelada, em plenitude, quando sairmos deste mundo pelas portas da morte. É uma vida tão admirável que nunca os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem o coração humano persentiu, nem qualquer mente humana, por mais fulgurante que seja, a poderá sequer imaginar! (cf. 1Cor 2, 9).
Sabemos que, por qualquer motivo, errado ou menos bom, há crianças que não chegam a experimentar a realidade deste mundo, nascem mortas, não gozam da beleza desta vida. Como, porém, já desde a sua conceção são pessoas, essas crianças começam, assim o cremos, a gozar da bem-aventurança eterna. Começam a gozar dessa vida à qual todos nós somos chamados e esperamos chegar um dia, onde também elas nos hão de receber e abraçar gloriosamente.
Nós, porém, não duvidamos nem meramente suspeitamos que essa vida possa existir. Nós sabemos que ela existe realmente. Essa certeza reclama da nossa parte uma atenção bem a pique e firme. Jesus veio ao nosso encontro, precisamente desse outro lado da vida. Veio para dela nos falar, nos ensinar o caminho e nos revelar, em toda a sua pessoa, o rosto da misericórdia do Pai. Sabemos quem Ele é, qual a sua autoridade, o que Ele disse e fez para nos revelar o amor de Deus por nós e a vida que tem preparada para aqueles que o amam. Sabemos que pela sua morte venceu a morte e aos mortos deu a vida, e que, como Ele ressuscitou, também nós haveremos de ressuscitar. Sabemos que, ‘para os creem em Cristo, a vida não acaba, apenas se transforma, e, desfeita a morada deste exílio terrestre, adquirimos no céu uma habitação eterna’.
Mas, e há sempre um mas! Podemos saber, acreditar e até desejar ardentemente lá chegar, mas assumir, conscientemente, os caminhos da direção oposta, fazendo o que queremos, não o que devemos. Podemos fazer orelhas moucas a tudo isso, mandar às urtigas os sinais de pista, rejeitar a sabedoria do Evangelho, ignorar a eloquência da Cruz e fechar as portas do coração a Cristo Redentor que tantas vezes se faz encontrado pelos caminhos da nossa vida. Se, acomodados nesse desleixo ou indiferença, esquecermos que tudo o que é dom, tudo o que é graça de Deus, implica também a colaboração humana, mesmo que acreditemos e esperemos na infinita misericórdia de Deus, podemos nascer mortos para esse outro lado da Vida (cf. Lc 16, 19-31).
Eis o busílis!…
Portalegre-Castelo Branco, 14-04-2023.