A propósito do próximo referendo sobre o aborto em Portugal, o Jornal da Madeira entrevistou Pedro Vaz Patto, membro da Comissão Nacional Justiça e Paz JORNAL da MADEIRA — Despenalização ou legalização do aborto? O que está implícito na pergunta do próximo referendo? Pedro Vaz Patto — A pergunta alude à despenalização da interrupção voluntária da gravidez quando realizada, por opção da mulher, nas dez primeiras semanas de gravidez, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Supõe, assim, que haja estabelecimentos de saúde legalmente autorizados a praticar o aborto. Por isso, deveria aludir, antes, à legalização do aborto, ou (porque a prática do aborto dependerá apenas da vontade da mulher, independentemente de qualquer motivo mais ou menos relevante) à sua liberalização. Ao aludir à despenalização, a pergunta pode ir de encontro ao sentir de pessoas que rejeitam a legitimidade do aborto (afirmam: “sou contra o aborto”), mas não concordam com a penalização das mulheres que praticaram um aborto quando grávidas. No entanto, não é apenas, nem fundamentalmente, a despenalização que está em causa. Uma conduta pode ser despenalizada sem que se torne lícita, um direito, ou uma actividade com a qual o Estado passe a colaborar. O consumo de droga foi despenalizado, passou a ser objecto de sanções não penais, não se tornou lícito, nem o Estado passou a distribuir droga a quem o solicite. Nada disto se verificará quanto ao aborto praticado nas primeiras dez semanas de gravidez por opção da mulher se a proposta submetida a referendo for aprovada. O Estado passará a colaborar na sua prática (em hospitais públicos ou através do financiamento público de clínicas privadas), como conduta lícita que passará a ser. Por isso, quem rejeite a legitimidade ético-jurídica do aborto, ainda que rejeite a penalização das mulheres que abortaram quando grávidas, não poderá aceitar tal proposta, que é de legalização e liberalização do aborto. JM — Mas, não é escandaloso julgar uma mulher em tribunal por abortar? PVP — A respeito da criminalização, ou penalização, do aborto, importa, também, clarificar o seguinte. Associa-se, frequentemente, a penalização à pena de prisão. Esta é, porém, segundo um princípio basilar do nosso sistema jurídico-penal, um último recurso e muitas outras penas, a aplicar preferencialmente, nele estão contempladas. Não é, por isso, anómalo que não haja, na prática, penas de prisão de mulheres que tenham abortado quando grávidas, tal como não se verificam, na prática, penas de prisão em relação a outros crimes em relação aos quais tal possibilidade não está teoricamente afastada (injúrias e difamação, por exemplo). O próprio julgamento, com o estigma e a publicidade que lhe estão associados (particularmente gravosos em domínios que se situam na esfera da intimidade pessoal, como se situa a prática do aborto), pode ser evitado através do recurso à suspensão provisória do processo, instrumento que procura atingir os objectivos pedagógicos das penas evitando tal estigma e tal publicidade. Tenho pugnado, no âmbito da iniciativa legislativa de cidadãos Proteger a Vida sem Julgar a Mulher, pelo recurso sistemático à suspensão provisória do processo no que a tal crime diz respeito (tal recurso já é possível, mas pretendemos que passe a ser esta a regra), recurso com que se deveriam conjugar medidas de apoio psico-social tendentes a eliminar na raiz as causas do aborto (causas que a legalização deste deixa intactas). Entendo que, no tratamento jurídico-penal do aborto praticado pela mulher grávida, deve distinguir-se a condenação clara do erro (não podemos esquecer que está em causa um atentado à vida, o primeiro dos direitos) e a compreensão e solidariedade para com a pessoa que erra (merecedora, muitas vezes, de um juízo de culpa atenuado, assim como de apoios, para além da condenação). Encarada nesta perspectiva, a própria penalização do aborto (que – repito – não é a questão fundamental em discussão) pode ser aceita por muitas pessoas que rejeitam a legitimidade do aborto e não deixam de ser sensíveis aos dramas das mulheres que abortaram. JM — Os argumentos que dizem que “a mulher tem direito ao seu corpo” e /ou que o “embrião não é um ser humano”, são válidos? PVP — Temos de partir dos dados actuais da biologia. Encarar o embrião e o feto como parte do corpo da mulher seria recuar às concepções do direito romano (segundo as quais, seriam parte “das vísceras da mulher”). Também na antiga Grécia se considerava que só com o nascimento se saberia se o feto era humano ou monstro (é claro que não havia, então, ecografias…). Os dados da biologia são inequívocos: a partir da concepção estamos perante um novo ser da espécie humana, com um património genético próprio (único e irrepetível, distinto da mãe e do pai), dotado de capacidade de evoluir, conservando sempre a mesma identidade (é sempre o mesmo até à idade adulta e à morte), através de um processo autónomo e coordenado, sem qualquer quebra de continuidade, de acordo com uma finalidade presente desde o início (um processo sumamente organizado e inteligente, pois, muito longe de um simples amontoado de células). No fundo, o embrião é aquilo que cada um de nós já foi e nenhum de nós teria atingido a fase da vida que hoje atravessa se não tivesse passado por essa fase inicial da vida, ou se tivesse sido impedido nessa fase tal processo de evolução natural. Trata-se de um processo contínuo, sem saltos de qualidade. Isto significa que a dignidade da pessoa existe desde a concepção, não se adquire a partir de determinado momento (as dez ou dozes semanas de gestação, o nascimento ou a idade adulta), nem se vai adquirindo progressivamente. A dignidade própria da pessoa humana ou se tem, ou não se tem. É a mesma antes ou depois do nascimento, como é a mesma na infância, na juventude, na idade adulta ou na velhice. JM —Para um crente, cristão, é indiferente que se diga “sim” ou “não” no próximo referendo? PVP — Antes de mais, importa deixar claro que a causa da defesa da vida não é especificamente católica ou cristã. Trata-se da defesa do primeiro dos direitos fundamentais, que é pressuposto de todos os outros direitos. Não é necessário ser crente para reconhecer isso. Gosto de recordar a frase de um filósofo italiano socialista e laico, muito prestigiado e já falecido, Norberto Bobbio: “espanto-me que os laicos deixem aos crentes o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar”. Para os católicos, a rejeição da legalização do aborto é uma exigência de fidelidade a um princípio fundamental da doutrina social da Igreja, como salientou várias vezes o Papa João Paulo II, em particular na encíclica Evangelium Vitae. Aí afirmou: “Como, há um século, a classe operária era oprimida nos seus direitos fundamentais e a Igreja com grande coragem tomou a sua defesa, proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador, assim, agora, quando outra categoria de pessoas é oprimida no direito fundamental à vida, a Igreja sente que deve, com igual coragem, dar voz a quem não a tem. O seu grito é sempre o grito evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos estão ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos” (n. 5). E também: “… no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se com ela, nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem dar-lhe a aprovação com o seu voto” (n.73). JM — Na sua opinião, a insistência de campanhas a favor do aborto, em Portugal, tem a ver com uma onda de laicismo? PVP — Penso que, por detrás desta insistência na legalização do aborto, está a vontade de certos sectores políticos afirmarem a sua identidade ideológica, como se fosse necessário ser partidário da legalização do aborto para se afirmar como “de esquerda”. Parece-me muito pobre, e muito distante das reais necessidades da sociedade portuguesa, esta preocupação. Além de que a legalização do aborto contraria valores habitualmente associados à esquerda: a defesa dos mais fracos (quem é mais fraco do que o nascituro?) e a exigência de transformação social (devemos concentrar os recursos no combate à pobreza, na criação de condições para que as mães e os pais possam criar os seus filhos, não aceitar, de forma conformista, que às mulheres grávidas em dificuldade só sejam dadas como alternativas o aborto clandestino e o aborto livre). Quando se apresenta a legalização do aborto como uma exigência da modernidade, que nos leva a seguir o exemplo de outros países, esquece-se que nesses países o aborto já foi legalizado há vinte ou trinta anos e que devemos aprender com essa experiência O que hoje se conhece e então se desconhecia, ou não se conhecia tão bem, aponta no sentido da ilegalização do aborto, não da sua legalização. Há vinte ou trinta anos não se conheciam tão bem como hoje as características da vida pré-natal. De ano para ano, são cada vez mais aprofundados esses conhecimentos e mais perfeitos os meios tecnológicos que permitem visualizar essa vida. Há vinte ou trinta anos não se conheciam, como se conhecem hoje, os graves danos que o aborto provoca na saúde psíquica da mulher. São cerca de cem mil as mulheres que, nos Estados Unidos, todos os anos, procuram ajuda para se libertarem dessas sequelas. Quando o aborto foi liberalizado na generalidade dos países europeus, os partidários dessa liberalização afirmavam que o aborto seria uma prática cada vez mais rara à medida que se difundisse mais o planeamento familiar. Isso não se verificou. A percentagem de abortos legais em relação aos nascimentos atinge cerca de um terço nos Estados Unidos e na Suécia, ou cerca de um quarto no Reino Unido e na França. Todos estes factores levam a que em países pioneiros na liberalização do aborto como os Estados Unidos e a Austrália seja cada vez maior a oposição a essa liberalização. JM — A propósito das vida, há lugar para o berço de Jesus? PVP — A mensagem do Natal relembra-nos que a vida é sempre um imenso dom de Deus, mesmo quando as condições externas do seu acolhimento não são as ideais (como não eram as da gruta de Belém). Chiara Lubich afirma que “aquele menino é o princípio da revelação do amor de Deus para connosco”. O Natal diz-nos que Deus está próximo de nós, dos nossos problemas e do nosso dia-a-dia. Se correspondermos a esse amor, Jesus pode renascer entre nós e a sua presença dar-nos-á a luz e a força que nos permitem nunca perder a esperança na construção de um mundo que proteja e valorize a vida, a justiça e a paz.