O Banquete Eucarístico. A Palavra e o Sinal

Catequese do Cardeal-Patriarca de Lisboa no 2º Domingo da Quaresma 1. A Eucaristia como celebração da Páscoa é o sacramento dos sacramentos. O realismo dos sentidos dá lugar à significação simbólica dos sinais. Os sinais sacramentais são realidades naturais na vida dos homens, cujo significado simbólico é enriquecido pela acção misteriosa do Espírito Santo, que dá realismo existencial e histórico ao desígnio salvífico de Deus. A significação simbólica desses “sinais”, sugere e abre para a compreensão da mensagem salvífica, só compreendida ao ritmo da luz da fé, portanto ao ritmo da Palavra de Deus. Num sacramento, a Palavra revela e desvela a significação salvífica do sinal sacramental e com ele é instrumento da eficácia salvífica da intervenção do Espírito Santo. A realidade humana que serve de sinal ao sacramento da Eucaristia é o banquete. Diz o Santo Padre: “Não há dúvida de que a dimensão mais saliente da Eucaristia é a do banquete. A Eucaristia nasceu, na noite de Quinta-Feira Santa, no contexto da Ceia Pascal. Traz inscrito na sua estrutura o sentido da comensalidade (…) Este aspecto exprime bem a relação de comunhão que Deus quer estabelecer connosco e que nós mesmos devemos fazer crescer uns com os outros”[1]. E já antes, na Carta Encíclica “Igreja da Eucaristia”, o Santo Padre escreveu: “A Eucaristia é verdadeiro banquete, onde Cristo Se oferece como alimento”[2]. De facto, na vida dos homens, o banquete é uma experiência que sugere alimento, mas também celebração e festa, alegria do encontro e da comunhão. Mas nenhuma destas significações naturais exprime cabalmente a realidade da Eucaristia, porque ela é obra da acção do Espírito Santo e a amplitude do seu significado é-nos revelada pela Palavra. Sem fugir à verdade humana do banquete, a Eucaristia é sempre revelação da verdadeira festa de Deus, anúncio do banquete escatológico. Banquete da nova e definitiva Aliança 2. É assim que Jesus classifica a Ceia Pascal, durante a qual institui a Eucaristia (Mt 26,28 e Lc 22,20). Aliás a própria ceia pascal judaica era um banquete de aliança, no qual o Povo de Israel fazia memória da fidelidade de Deus à aliança estabelecida com Israel, libertando-o da escravidão do Egipto. Esta é uma dimensão central da Eucaristia: é um banquete de aliança, que reúne sentimentos como a acção de graças, a confiança e a festa. A Páscoa de Jesus, actualizada na Eucaristia, é o selo definitivo de Deus na sua promessa de fidelidade. Ele continua a garantir, com o dom do seu Corpo e Sangue, a salvação a acontecer. Em cada Eucaristia, a Igreja e, através dela, a humanidade, continua a celebrar com Deus a aliança da salvação. Porque esta aliança é definitiva, ela dá-nos a garantia de eternidade. O futuro da humanidade, sejam quais forem os dramas por que ainda há-de passar, só pode ser positivo. A Eucaristia é o sacramento da confiança e da esperança. O festim do regresso do filho pródigo 3. Na parábola do filho pródigo, é na alegria do banquete e da festa, que o pai celebra o reencontro com o filho extraviado, que regressa à casa paterna (Lc 15,11-31). O acolhimento misericordioso que Jesus faz a uma mulher pecadora, que irrompe num banquete que um fariseu oferecera a Jesus, dá um sentido novo ao banquete e explica porque é que Jesus come com os publicanos e os fariseus (Lc 7,36 ss e 5,29-32). E Zaqueu, o publicano que segue Jesus, faz da sua conversão uma festa e celebra-a num banquete (Lc. 19,2ss). A Eucaristia é o banquete da reconciliação, a festa dos convertidos que regressam à intimidade de Deus e da comunidade. É por isso que há uma convergência e uma unidade inseparável entre a Eucaristia e o sacramento da reconciliação[3]. Mas a própria Eucaristia é sacramento de reconciliação. Todos quantos celebramos este sacramento da comunhão e da misericórdia, nos sentimos regressados de muito longe, acolhidos pela ternura misericordiosa de Deus e pelo amor da comunidade e sentimos desejo de nunca mais “fugir” ou ficar para trás, respondendo com a nossa fidelidade à fidelidade de Deus em Jesus Cristo. A Eucaristia encerra, na Igreja, um tesouro de misericórdia. Quantas lágrimas de alegria pela reconciliação confiante com Deus e com os irmãos, quantas decisões de mudança de vida e de conversão, enriquecem esse tesouro que a Igreja guarda em silêncio e apresenta continuamente na celebração pascal. Cada Eucaristia pode ser sempre a festa do regresso e do reencontro. O banquete do pão repartido 4. Um banquete é uma refeição. Mas é mais do que comer, é conviver. O facto de o “pão” partilhado gerar comunhão espiritual entre as pessoas, é a concretização da palavra da Escritura, com que Jesus responde ao demónio, nas tentações do deserto: “O homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4). No milagre da multiplicação dos pães a lógica de Jesus completa a anterior. Perante uma multidão que se tinha esquecido de tudo para O seguir e ouvir, Jesus diz aos discípulos: esta multidão não vive só da palavra, precisa de alimento. Ide procurar maneira de a alimentar (Jo 6,1-15). O facto daquele pão repartido ser fruto de um milagre, fez com que, naquela multidão, o alimento do corpo não perturbasse a saciedade do espírito. E é por isso que este milagre é o anúncio da Eucaristia. O homem precisa tanto de alimentar o corpo, como de fortalecer o espírito para a experiência da comunhão. Esta tensão entre o alimento corporal e o alimento espiritual fará, para sempre, parte da densidade da Eucaristia. O pão repartido é o corpo de Cristo e sugere a quem d’Ele se alimentou, que reparta pelos irmãos, o pão que alimenta o corpo. A Eucaristia gera sempre um dinamismo de partilha. 5. A Eucaristia é um verdadeiro banquete, onde somos convidados a harmonizar as necessidades materiais de alimento corporal com o sentido novo e definitivo do alimento espiritual, que gera a comunhão na caridade e anuncia o banquete definitivo, na Casa do Pai. Como sacramento, ela situa-se na linha do Reino dos Céus, já experimentado na caridade e anunciado na sua plenitude escatológica. E isso é possível porque o pão repartido é o próprio Corpo de Cristo. Mais uma vez estamos perante a exigência da Páscoa, a “passagem”, a grande mudança de perspectiva e de abertura a novos horizontes da nossa fome e da nossa sede. Os que beneficiaram da multiplicação dos pães para matarem a fome física, não foram capazes de fazer essa passagem, quando o Senhor lhes diz para procurarem outro alimento, o seu corpo que é verdadeira comida. O Santo Padre comenta, assim, esta passagem do Evangelho de São João: “A Eucaristia é verdadeiro banquete, onde Cristo Se oferece como alimento. A primeira vez que Jesus anunciou este alimento, os ouvintes ficaram perplexos e desorientados, obrigando o Mestre a insistir na dimensão real das suas palavras: «Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós». Não se trata de alimento em sentido metafórico, mas «a minha carne é, na verdade, uma comida, e o meu sangue é, na verdade, uma bebida» (Jo. 6,53-55)”[4]. Esta “passagem”, a comunidade cristã tem de a fazer, cada vez que celebra a Eucaristia. Mais exigente do que a “passagem” do Mar Vermelho 6. A Eucaristia é a realidade mais exigente da vida do cristão, pois nela é chamado a fazer essa “passagem” na totalidade da sua vida. No Mar Vermelho a passagem foi mais simples, apesar de misteriosa: o povo passou de um lado para o outro. Na Eucaristia não passa de um lado para o outro, do temporal para o eterno, do material para o espiritual, do alimento do corpo para o alimento do espírito. Mantém-se, nela, todo o realismo da vida neste mundo, mas introduzindo nela a força transformadora da vida nova, semente de eternidade. Esta tensão entre o presente e o eterno, deve exprimir-se na própria celebração da Eucaristia, e há dois extremos a evitar: procurar o sinal sacramental no realismo de uma refeição humana, onde se come, bebe e confraterniza, como se o realismo de uma refeição humana esgotasse a significação sacramental da Ceia do Senhor. Já São Paulo denuncia este realismo, perguntando aos coríntios se eles não têm casa para comer e beber (1Cor 15,22); ou fazer da celebração eucarística um mero rito religioso, esvaziando-a das exigências da real partilha do pão deste mundo, esquecendo que desde o início a cerimónia da fracção do pão, levava os cristãos a porem em comum tudo o que possuíam (Act 2,42-47). A caridade e a comunhão fraterna, frutos sacramentais da Eucaristia, exprimem-se, também, nas realidades materiais deste mundo, e de modo particular na partilha fraterna[5]. Nos primeiros séculos da Cristandade, em comunidades cristãs mais pequenas e mais enraizadas no todo da comunidade humana, os cristãos traziam para a celebração as ofertas que concretizavam na sua partilha de bens, que depois eram distribuídos pelos pobres. Era o “ofertório”, momento que acabou por ser integrado liturgicamente no conjunto da celebração. O pão e o vinho, frutos da terra e do trabalho do homem, oferecidos para se transformarem no Corpo e Sangue de Cristo, são uma parte desse pão repartido e acabará por ajudar a comunidade a fazer a “passagem”, dando sentido novo à partilha dos dons. Na maneira actual das nossas comunidades celebrarem a Eucaristia, este momento de ofertório precisa de ser reconduzido à sua dimensão de partilha real. Ele não pode ser o momento de explosão simbólica de símbolos que pouco significam, em que se oferece o que não se dá. O pão e o vinho, frutos da terra e do trabalho do homem precisam de ser completados com a real partilha dos nossos bens, verdadeiro pão repartido, expresso nas realidades da vida actual. O dinheiro, principal expressão actual dos bens que se possuem, partilhado pelos irmãos e para as despesas da comunidade, tem mais significado real de partilha do que todas as realidades simbólicas que se trazem ao altar. Para “salvar” o ofertório, é preciso anunciar às comunidades o destino da partilha, pois sem isso a moeda oferecida transforma-se em gesto que não encarna o compromisso generoso do “pão repartido”, da partilha de bens com os irmãos e com a comunidade. Mas a partilha material, na Eucaristia, só encontra o seu sentido pleno, se significar o dom da própria pessoa, a disponibilidade para Deus e para os irmãos, na missão, nas actividades comunitárias, no serviço gratuito que exprime a caridade. Só assim todos os nossos dons se transformarão em oferta eucarística, em “hóstias espirituais”. Esta “passagem” é realizada pela Palavra 7. A Eucaristia é, por excelência, o “mistério da fé”. Os cristãos só realizarão, nela, a “passagem” a que ela convida, se neles brilhar a luz da fé. E esta luz só iluminará os seus corações, se escutarem a Palavra de Deus. Desde o princípio da Igreja, a “fracção do pão” é sempre iluminada pela Palavra. A comunidade cristã começava por ouvir a palavra dos Apóstolos (Act 2,42). É por isso que a Eucaristia é mistério de luz[6]. Na Eucaristia, a mesa da Palavra é tão importante como a mesa do pão repartido ou, dito de outra maneira, a Palavra é o primeiro pão repartido. Uma assembleia eucarística que não escute a Palavra como fonte de luz, corre o risco de passar ao lado do gesto eucarístico, não lhe captando o sentido e não fazendo a “passagem”. Isto sublinha a importância da proclamação da Palavra na liturgia e da homilia que prepara a assembleia para a “passagem”. Ouçamos, a este propósito, o Santo Padre: “Não basta que os textos bíblicos sejam proclamados numa língua compreensível, se tal proclamação não é feita com o cuidado, preparação prévia, escuta devota, silêncio meditativo, que são necessários para que a Palavra de Deus toque a vida e a ilumine”[7]. Acaso teriam os discípulos de Emaús reconhecido o Senhor ressuscitado na fracção do pão, se, durante o caminho, Ele não os tivesse iluminado com as palavras da Escritura, a começar em Moisés e passando pelos profetas? (Lc 24,27)[8]. Quando o Povo de Deus converge para a Eucaristia, sabe o que procura e deseja. Tem de ser o desejo da Eucaristia, o desejo de fazer a “passagem”, que motiva a bem proclamar e escutar a Palavra de Deus. Sé Patriarcal, 20 de Fevereiro de 2005 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca ——————————————————————————– [1] Mane Nobiscum Domine (MND), n. 15 [2] Ecclesia de Eucharistia (Ede), n. 16 [3] Ibidem, n. 37 [4] Ibidem, n. 16 [5] Cf. N.M.I. nn. 27 e 28 [6] ibidem, n. 12 [7] Ibidem, n. 13 [8] cf. Ibidem, n. 12

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