O assunto de que não se pode falar

Jorge Pires Ferreira, Diocese de Aveiro

Uma mãe de família, um teólogo e uma freira entram numa sala para falar a um grupo de cardeais. Parece o início de uma anedota. Mas é antes a continuação de uma grande conversa sobre as mulheres na Igreja. No entanto, a conversa está condicionada à partida. Há um assunto de que não podem falar. Mas é precisamente esse o único assunto que é preciso discutir, refletir ou conversar.

A mãe de família, o teólogo, que é padre, e a freira são, respetivamente, Lucia Vantini (Verona, 1972), Luca Castiglioni (Legnano, 1981) e Linda Pocher (Udine, 1980). E a conversa que tiveram com o grupo de cardeais que auxilia o Papa na reforma da Igreja aconteceu no dia 4 de dezembro de 2023 e foi publicada em português (a parte das comunicações destes três) pelas edições Paulinas sob o título “Desmasculinizar a Igreja. Análise crítica dos «princípios» de Hans Urs von Balthasar”.

A conversa – chamemos assim às comunicações dos três – é audaz. Desmonta os princípios de von Balthasar, ou o uso que deles se faz, como “simplificações banais”, como algo que causa “mal-estar” e “intolerância” entre as mulheres, como “fórmula vazia com tristes e injustos efeitos colaterais”. E a audácia é tão grande quanto o uso que os papas desde Paulo VI têm feito dos princípios petrino e mariano para falar do homem e da mulher na Igreja.

Numa versão simplificada das ideias do teólogo suíço, o princípio petrino refere-se à “dimensão objetiva e institucional da Igreja” – o poder, que é exercido por homens. O princípio mariano refere-se ao «“sim” [de Maria] sem condições” – o carisma do amor e do cuidado, exercido por mulheres. As comunicações aos cardeais deixam bem claro que não só as mulheres (e os homens) não se reveem nestes princípios, como von Balthasar referiu outros que se omitem: o paulino, da profecia; o joanino, da mística e da contemplação; o tiaguino, do sentido histórico da salvação. Lucia Vantini conclui que é preciso “sair da idealização mística do feminino e redescobrir as mulheres reais, interrogar a consciência masculina nos seus aspetos subjetivos mais afetivo e vulneráveis, dar vida a uma cultura do nós, da complexidade, da interconexão, da liberdade da diferença e na diferença” (pág. 32).

A conversa é audaz, mas, na minha opinião, inconsequente. A conversa tem como finalidade, a pedido do Papa Francisco, “desmasculinizar a Igreja”. A expressão é dele. Não imagino como se pode ter a dúvida, se alguém a tem, de que se a Igreja está masculinizada é apenas e totalmente por admitir somente homens na ordenação. Nunca será possível “desmasculinizar a Igreja” enquanto as mulheres não puderem presidir à Eucaristia. Mas disso não se pode falar abertamente. É a única questão que interessa. Mas, silêncio. Toda a gente pressente isso, mas “não está em discussão”. Questão intocável. “A questão dos ministérios não está, por agora, na agenda, mas anda no ar, sentido-se já a sua pressão: como um fantasma, paira nas nossas salas, perturba o raciocínio e inibe a franqueza entre nós”, desabafa Vantini no início da sua comunicação (pág. 16), para não mais voltar ao assunto de forma direta.

Não entendo como se demora tanto tempo a abordar de caras o assunto. Como a Missão-Igreja prescinde de metade de humanidade para algo tão fundamental como tornar Cristo presente na Eucaristia. Não entendo como se continua a argumentar que Jesus só escolheu homens para apóstolos, esquecendo (ou omitindo – é irreal falar de ignorância) que a simbologia dos apóstolos não reside apenas na masculinidade, mas também no número (12 tribos) e na nacionalidade-etnia (judeus), elementos de que Igreja prescindiu para escolher os seus ministros, que, enquanto presbíteros, não são necessariamente “sucessores dos apóstolos”.

O assunto é falado, sim, nos pequenos grupos, mas a conclusão é a mesma que nos grandes. Algo como: “Há muito a fazer, há um longo caminho a percorrer até à ordenação de mulheres, que por agora não é discutível”.  E outro argumento surge, aproximando Francisco de Joseph Ratzinger, que ordenar mulheres é “clericalizar mulheres”. Joseph Ratzinger, numa estranha aliança com as feministas, chegou a afirmar que é bom que as mulheres não sejam ordenadas porque, como algumas teólogas feministas afirmam, “a ordenação é submissão” (no livro-entrevista “Vós sois o sal da terra e a luz do mundo”).

Cada dia que passa sem avanços nesta questão é um dia em que a Igreja se atrasa na sua missão de testemunha do Reino.

Para muitas mulheres, o atraso parece ser irrecuperável. Nada do que a Igreja “masculinizada” possa dizer ou fazer é ouvido. Há muitas mais questões femininas (no sentido em que a “Igreja masculinizada” não consegue compreender, como são as questões do corpo e da sexualidade) para além da ordenação de mulheres, mas é esta a que mais pode mudar positivamente o rosto da Igreja. Não é só a mais urgente. É a mais importante.

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