A fé cristã, a realidade virtual e o espectáculo

Jorge Teixeira da Cunha, Diocese do Porto

Hoje, felizmente, já ninguém se torna ateu devido aos avanços do conhecimento científico, como aconteceu no passado. Mas o conhecimento científico possibilitou a tecnologia que torna virtual a realidade e faz da grande maioria dos seres humanos do mundo de hoje espectadores e turistas. Este novo contexto já não é causa de ateísmo, mas é pior do que isso e contém muitos perigos para a experiência de fé. Ocorre, por isso, que a nossa teologia e a nossa pastoral sejam capazes de identificar o perigo e de o combater.

Onde está o perigo do mundo do espectáculo e da realidade virtual? Esse perigo não é simples de identificar. Mas vamos tentar esclarecer o assunto. A realidade, tal como decorre da imagem científica do mundo, é caracterizada pela constância das leis físicas, pelo determinismo dos processos da matéria, seja da matéria animada como da inanimada. Por sua vez, as ciências sociais e do comportamento também funcionam estabelecendo as regras gerais do funcionamento dos grupos humanos. Ora, o ser humano tem sempre uma apreensão individual da realidade. Por isso, tende a ficar fora das preocupações do conhecimento científico do que, não obstante, é o autor. A aquisição destes conhecimentos faz do ser humano um observador dos processos que dão corpo à ciência. Porém, o ser humano fica de fora, mesmo quando se observa a si mesmo pelos olhos da biologia ou da medicina.

Este processo de observação da objectividade do mundo, fez do ser humano um espectador do cosmos, dos corpos dos seres vivos e do seu próprio corpo. Quando este processo de observação se tornou uma indústria através da viagem e do turismo, este caminho de transformação do ser humano num espectador cresceu exponencialmente. E estamos na véspera do turismo interplanetário. O desenvolvimento ilimitado da tecnologia das comunicações fez do nosso mundo uma civilização do espectáculo, e fez da experiência da realidade uma questão de consumo de conteúdos, mediados pela internet, pela televisão, pelos happenings de massas de reúnem centenas de milhar de pessoas. Esta indústria de conteúdos não pára de crescer, não sendo já relevante se os conteúdos são reais ou virtuais.

O problema deste mundo novo é que faz de nós, seres humanos incautos, o pasto de uma manipulação generalizada, consumidores sem nome, que a habilidade de uma indústria explora de forma competente, mas impiedosa. O risco é enorme e o mundo novo em que já vivemos não pode deixar de nos causar uma preocupação profunda. Se as pessoas falham a experiência da realidade, feita de sofrimento, de alegria, de encontro, de amor e de ódio, de esforço e de angústia, que será feito de nós neste mundo de consumos frívolos e irreais?

A fé cristã supõe algumas coisas que estão em perigo. Desde logo, a escuta de Deus, mediada pelo silêncio, pela graça, pela gratuidade da hospitalidade ao mistério que visita o ser humano da forma mais imprevisível. Na Babel das comunicações de hoje não é fácil que Alguém nos encontre na margem do lago da vida. Como vamos ser capazes de dar a viver a experiência de fé quando nas nossas igrejas entrem dez vezes mais turistas do que orantes?

Está em perigo também a experiência moral. O determinismo generalizado, que nos transmite a visão científica e técnica, não tem lugar para a experiência do investimento responsável do ser humano que é a experiência moral. A experiência moral verdadeira implica um pathos originário que fica em causa na civilização do espectáculo e do virtual. Por isso, os seres humanos não experienciam a sua originalidade e a sua identidade irrepetível. Basta ver como se expõem e como alienam a sua privacidade de inúmeros modos, como deixaram de dispor de si para enfrentar o injusto, para lutar por causas que não sejam as do idealismo ético que vemos por aí.

Não falamos já da experiência política, das causas da justiça social e assim por diante. Os comportamentos erráticos dos eleitores estão à vista de todos e a causa disso radica também nesta descrição que estamos a tentar fazer.

Há, pois, muito que fazer na teologia e na pastoral de hoje. Uma grande campanha de lucidez vai ser necessária para dar continuidade à experiência de fé nos dias que correm.

Partilhar:
Scroll to Top