O Ano Paulino: a Páscoa e Homem Novo

1- Chegou adiantada a Primavera deste ano devido ao calor das últimas semanas que fez desabrochar muitas árvores antes do dia 21 de Março. O povo suspeita dessa floração precoce por ela ameaçar com desgostos futuros. Há renovações ilusórias. Isto pode ajudar na reflexão de um tema central nas cartas de S. Paulo: o «homem novo», intimamente ligado com a «nova Páscoa»,a «nova aliança», o «mandamento novo», o «novo Testamento», o «cântico novo», o «fermento novo», o «vinho novo», conceitos semeadas no Novo Testamento e na Liturgia. 2- Na linguagem corrente, quando dizemos que algo é «novo», isso pode entender-se como sinónimo de «recente» e jovem, ou de algo «diferente e admirável». No primeiro sentido, as coisas são novas em relação à data, e, assim, falamos de pão novo, de vinho novo da última colheita; no segundo sentido, falamos de vinho novo como sinónimo de excepcional. Na língua grega havia duas palavras distintas para exprimir o sentido de «novo»: se se trata de algo recente, diz-se «neos» ( neo-presbítero, jovem); se se trata de algo inaudito, diz-se «kainos». A língua grega entrou na Bíblia pela tradução grega dos LXX, aparecendo o termo «neos» 23 vezes e «kainos» 42 no Novo Testamento, pertencendo a Paulo, respectivamente, oito e doze vezes. Em vernáculo, usamos o termo «novo» com os dois significados de «recente» e de «surpreendente», e a diferença de significado capta-se pelo conjunto da frase. Assim, as coisas do mundo são «velhas» e caducas, corroídas pela traça do tempo e pelo uso banal, profano, fora da força de Deus; pelo contrário, as coisas de Deus são sempre novas porque têm a força de Deus, e, mesmo com a idade, não enferrujam, têm folhas novas, porque «Deus tem muitos anos mas não tem dias». A arca da aliança é transportada num «carro novo»; para Deus reservam-se as «primícias» e os «primogénitos», os «animais» que ainda não tiveram jugo como a jumentinha do Domingo de Ramos, o cordeiro pascal de um ano e sem defeito, um sepulcro novo para sepultar Jesus. Para os tempos messiânicos, prometem-se um ensino novo, diferente do dos fariseus; uma aliança nova, superior à antiga; um vinho novo em odres novos. Para Paulo tudo o que se refere a Cristo é «novo» e divide tudo em «antes de Cristo» e «depois dele»: antes, tudo é «velho» e caduco; com Ele tudo é «novo», vigoroso e inaudito. A causa dessa «novidade» é a ressurreição de Jesus, que ele experimentou na estrada de Damasco. Cristo ressuscitado tudo renova, retira o «véu» que encobria as Sagradas Escrituras e alumia o passado, o presente e o futuro. Paulo lê a Bíblia a partir de Cristo, do fim para o princípio, pois só Ele permite ler bem o passado: a «terra prometida» e a salvação não se limitam à Palestina e a viver «muitos anos», «ver crescer os filhos dos filhos até à quarta geração», «ter muitos bois e camelos», como pensava Job, mas estende-se por todo o mundo e para além da morte. De um modo grandioso, como se escrevesse um novo livro do Génesis, Paulo afirma que Cristo é o novo Adão (1 Cor 15,22,44-49) e fala de uma nova criação ( Rom 8,19,23; 2Cor 5,17; Gál 6,15) ou nova humanidade começada no baptismo, não por qualquer banho de água mas como obra do Espírito Santo ( Rom 7,8; 8,1-16; Gal 5,16, 25). O baptismo novo não é um qualquer banho de água mas obra do Espírito Santo (Rom 7,8; 8,1-16; Gal 5,16, 25). O homem novo ou homem espiritual, oposto ao carnal ( Rom 6,4), é uma «enxertia» e crescerá durante toda a vida chegando a «adulto» na escatologia final. Entretanto, ele é fermento novo (1Cor 5; Col 3, 10; Ef 4,22) para um «mundo novo» na terra, destruindo os muros que separavam judeus, gregos e romanos (Ef 2,15), não havendo mais escravo e homem livre, homem e mulher. 3- Recordemos que S.Paulo evangelizou grupos judaicos e uma sociedade pagã envolta em religiosidade, e as palavras novo, salvação, justificação, redenção, têm um significado claramente religioso e o homem é «novo» e «justo» por ter as medidas de Deus. A sociedade actual vive um paganismo diferente: tem a pretensão de haver ultrapassado a necessidade do religioso vive do mero esforço humano e a construção de uma «nova terra» e de um «homem novo», serão fruto do «progresso económico e social», e a «redenção ou salvação» obra da «revolução». Todos os revolucionários europeus falaram da necessidade de fazer surgir um «cidadão novo», um «estado novo», uma «raça nova». Disse-o Rousseau a respeito da educação; disse-o Marx e Lenine acerca da sociedade sem classes; disse-o Nietzsche anunciando o homem novo pela vontade de poder; disse-o Freud acerca do homem que ultrapassaria as neuroses religiosas e sexuais; disse-o a investigação laboratorial prussiana, antes de Hitler, em busca de uma raça pura. Só os judeus se negaram sempre a aceitar essa linguagem de homem novo, e percebe-se porquê: consideravam-se «os eleitos», não havendo lugar para nada melhor fora da lei moisaica e por isso rejeitaram Jesus. A sua dolorosa experiência histórica na Europa acentuou ainda mais o medo do homem novo estranho ao judaismo. 4- A construção de um mundo novo regressa agora como fruto da política económica, da tecnologia, da cirurgia, da farmacologia. O homem tornar-se-á novo se tiver melhores condições de habitação e de higiene, assistência médica e cirúrgica, meios de transporte, armazenagem dos produtos para horas de carência, meios para se libertar das leis da sexualidade. Os recursos farmacológicos (drogas, comprimidos, preservativos, aborto, a eutanásia, a fecundação laboratorial para produção de fetos destinados à investigação e eliminação de deficiências graves em gerações futuras) apresentam-se como salvadores de contratempos individuais, conjugais, familiares e de política social. Os transplantes de órgãos e a doação de esperma e óvulos poderão ser uma nova fonte de rendimento económico para homens e mulheres, como escreveu há dias um semanário. Deste modo, o homem «salvará o mundo» pelos seus meios, sem precisar da «salvação» de Jesus, devendo a Igreja ser «afastada das coisas do mundo» por ser entrave, como disse na semana passada um comentador televisivo. 5- O leitor recolha-se um pouco e veja se este sonho não se instalou já no íntimo de muitos contemporâneos. A salvação cristã não desperta interesse, que vai todo para a política económica e social: os médicos, paramédicos, psiquiatras, psicólogos e políticos são os novos sacerdotes; a publicidade e a propaganda partidária, a palavra da salvação; as clínicas e os hospitais, os novos santuários; os recursos farmacológicos, os novos sacramentos. Por experiência pessoal de muitos anos, conheço a dedicação de muitas desses profissionais e a eficácia de vários desses recursos. Mas eles ficam sempre na área biológica, e os afectos do doente, a memória, o sentido da vida e a resposta aos grandes problemas, requerem outros meios. Sem eles e sem a ética, surgirá a «idolatria» dos deuses da terra que serão tirania contra o homem. Por isso, tome a sua Bíblia, leia devagar os textos citados extraídos das cartas aos Romanos, aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, veja como se torna oportuno reflectir sobre o «homem novo» e prepare-se para celebrar a «nova» Páscoa. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real

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