António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
O velho milésico Anaximandro [610-546 a.C.] terá escrito: «A Terra navega no espaço, apoiada no nada.» Será poeta ou filósofo este velho e perspicaz Anaximandro? O nada suporte da Terra no espaço e nós, com ela, navegantes num mar de nada?
Se o nada é nada, porque falamos do nada? Que há em “nada” para que o termo “nada” exista e seja tão vulgar a sua utilização? Que poderei dizer eu sobre o nada? Nada, direi. E já disse alguma coisa sobre o nada. E mais digo quando o substantivo com o artigo definido “o”. Se estou a substantivar o nada com um artigo definido não será que lhe estou a atribuir alguma substantividade? Existe alguma coisa que seja o nada?
Deixemos, porém, perguntas retóricas e passemos para expressões idiomáticas de uso corrente em que «o nada» é o protagonista da linguagem: «Isso não é nada», «Aqui nunca se passa nada», «Não acontece nada», «Não percebo nada», «Dar em nada», «Daí a nada», «De nada», «Um quase nada», «Absolutamente nada», «Mão cheia de nada». E até se diz e ouve «Nada de nada», como se o nada se pudesse retalhar noutros nadas, em nadas mais pequeninos. E que dizer do «Tudo ou nada» que ouvimos por aí a passear-se como se o «tudo» e o «nada» fossem duas «realidades» contrapostas?
Vamos ao latinzinho que talvez nos possa trazer algum contributo. Especulando, seguimos por dois caminhos, à procura de algum ponto de encontro. Especulando, repito, para o leitor não esquecer.
Parece que o termo “nada” procede da expressão latina “nulla res nata” que, literalmente, significa “nenhuma coisa nascida”. Deixemos para os gramáticos entendidos o processo pelo qual o “t” do latino “nata” se transformou em “d” do termo português “nada”, mas não deixaremos de notar que, das três palavras latinas – “nulla res nata” – só o termo “nata” [forma feminina do particípio passado do verbo “nasci” – “nascer”, de onde provém também “nação”, “natural” e “natureza”], permaneceu para se referir o significado da totalidade da expressão latina, “nenhuma coisa nascida”, ou seja, “nada”.
Desde muito cedo, ouvimos dizer que «Deus criou o mundo do nada». Até parece que «o nada» é a substância de que é feito o mundo. O nada seria, então, o mundo na sua substantividade inicial. Mas fui desvendando o significado da frase e comecei a descobrir a diferença entre o acto criador das humanas criações e o acto criador de Deus. O artista humano cria a partir de uma matéria pré-existente, seja de origem vegetal, seja de origem mineral ou de origem animal. Mas sempre a partir de matéria prima disponibilizada pela natureza. A natureza é o paraíso terreal das criações humanas, artísticas ou tecnológicas.
O ser humano não cria, pois, a partir do nada, por mais simples que sejam as obras criadas. A criação humana é sempre transformação. Propriamente falando, os humanos não criam, transformam, plasmando formas novas de formas encontradas. E, rigorosamente, essas formas novas não são de todo novas. Sempre nas formas humanas criadas pelos humanos há a reprodução de formas havidas que eles vão transformando a partir de outras. Só Deus cria a partir do nada. Nada de si, ou seja, nada do seu ser substancial para além do seu espírito criador, e nada do objecto, isto é, de qualquer matéria prévia. Sendo assim, Deus cria a partir de “nulla res nata”, de “nenhuma coisa nascida”, de nenhuma coisa preexistente ao seu acto criador. O homem não cria a partir de “nulla res nata”, mas de coisas “natas”, ou seja, “nascidas”, previamente dadas na “natureza”. Dizemos, por isso, “natureza dada”.
O fio filológico latino pode abrir-nos ainda outros interessantes caminhos. É que a palavra latina para significar “nada” é o conhecido termo “nihil” que nos dá a razão do seu significado: “nenhuma coisa”. E “nenhuma” é “nenhuma”. E nem sequer será uma espécie de espaço vazio, virtualmente pronto a encher-se de coisas. “Nada” é “nada”.
Mas, desvendando a raiz etimológica de “nihil”, poderemos descobrir outras realidades de interesse linguístico. Etimologicamente o “nihil” latino é uma contracção de “nihilum”, termo latino formado pelo prefixo negativo “ni” ou “ne” e “hilum” [“fio”]. “Nihilum”, “nihil” significa, segundo a etimologia e literalmente, “sem fio”. Portanto, sem nexo, sem qualquer relação. Uma realidade que “perdeu o fio” é uma realidade empobrecida, decaída, reduzida a uma espécie de nada. Realidade nadificada, digamos.
Chegados aqui, o interesse linguístico explode em interesse humano por via da analogia e o fio linguístico virtualiza o «fio da meada». De tantas meadas. Tantas como os caminhos dos afazeres da vida. Ele virtualiza, em última instância, «fio da vida» e o «fio da existência». Quando a vida «está por um fio” encontra-se próxima de um “nada” e quando a existência perdeu o fio entrou naquilo que os filósofos chamam «niilismo». O processo niilista de que falam os pensadores da existência humana consistiria na perda do fio, na destruição da sua relação substantiva, na perda do sentido da vida e na emergência do absurdo da existência humana.
Regressemos, então, ao acto criador de Deus que cria a partir de “nulla res nata”. É precisamente do acto criador que chegam a ser «nascidas» essas realidades que se encontram ligadas a Deus pelo «fio» da criação. A religião será o modo de o ser humano manter viva a ligação a esse «fio» fundador.
Quanto possa saber não há um entendimento unânime sobre a origem da palavra “religião”. Se uns opinam que ela tem origem no verbo latino “relegere” [reler], outros são de parecer que provém de verbo “religare” [religar], termo também latino. Quer-me parecer que as duas fontes linguísticas se encontram no “hilum” [“fio”], no acto para que apontam. Se o “relegere” [reler] indicia que a religião é o acto de ler e reler constantemente o fio criador de Deus que mantém na vida o ser humano, o “religare” [religar], indica a necessidade de o Homem se religar novamente ao fio da Transcendência perdida e superar o niilismo, essa espécie de nada vital em que poderá cair.
E assim regressamos ao início. Se o nada é nada, porque falamos do nada? Afinal o nada talvez seja o tudo de Deus em nós. Não sei se é também isso o que o teólogo Tomás Halík [n.1948] nos pretende dizer quando escreve: «As tradições místicas, em particular, sabem que Deus é “nada” (nenhuma “coisa” no mundo dos seres, das coisas, dos objectos) e que a palavra “nada” é talvez a expressão mais apropriada ao modo de ser de Deus. A singularidade de Deus não deve perder-se num mundo de diferentes “coisas”, pois o Deus da fé bíblica não habita entre ídolos, nem deve Deus tornar-se parte do mundo das noções religiosas, desejos ou fantasias humanas.» O niilismo tem algum sentido. Teologicamente negativo, será um niilismo do excesso de Transcendência. Situados como nos encontramos neste universo de coisas, é sempre tentador encaixar o excesso de Deus no pequeno universo dos nossos inábeis e pobres conceitos.
Aprecio particularmente estas palavras do teólogo checo, mas fico a lembrar que também os místicos e poetas encontram Deus no mundo das «coisas». Ausente-presente, nada-tudo, transcendente-imanente, Deus é «coincidência de opostos», como já há muito intuiu o grande filósofo Nicolau de Cusa [1401-1464] que é também mestre da «Douta ignorância». Só que nós, ignorantes que não doutos, embalados pela imanência, esquecemos a transcendência.