Nova encíclica vai mostrar Papa social

Intervenções sobre a pobreza, o sistema financeiro ou a ecologia têm-se multiplicado desde 2005 Esta Terça-feira, 7 de Julho, vai surgir em público a terceira encíclica do pontificado, desta feita centrada especificamente em temas sociais. O enquadramento deste documento no magistério de Bento XVI e no conjunto da Doutrina Social da Igreja ocupa, esta semana, o Dossier apresentado pela Agência ECCLESIA, que aponta alguns dos temas que, à luz das intervenções do Papa, nesta área, serão abordadas na Caritas in veritate.

"Este documento, que tem a data de 29 de Junho, solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, pretende aprofundar alguns aspectos do desenvolvimento integral na nossa época, à luz da caridade na verdade", disse o prórpio Bento XVI, na semana pasada. O Papa indicou que serão retomados os temas tratados na "Populorum Progressio", documento de referência para a Doutrina Social da Igreja, publicado em 1967 por Paulo VI.

Responsáveis do Vaticano já adiantaram que, neste texto, Bento XVI manifestará a necessidade de potencializar um humanismo que concilie o desenvolvimento social e económico com o respeito pelo ser humano, que diminua as diferenças entre ricos e pobres.

Fala-se desta encíclica desde 2007, mas a sua publicação atrasou-se por dois motivos principais: por questões de tradução, já que o texto sairá também em chinês, e devido à recente crise económica internacional.

As outras duas encíclicas de Bento XVI são "Deus caritas est", de 2006, e "Spe salvi", de 2007, centradas nas "virtudes teologais" da caridade e da esperança.

Bento XVI repete a palavra "caridade", abordando desta feita matérias ligadas ao mundo do trabalho, da economia e do desenvolvimento. Num mundo ainda abalado pela crise financeira que fez desmoronar várias das coisas que dava como certas, o Papa apresenta regras para o mundo económico e exigências de solidariedade.

Já em 1985, numa intervenção que viria a ganhar novo sentido à luz dos últimos acontecimentos da vida económica, o então Cardeal Joseph Ratzinger previa a crise no sistema financeiro mundial. Numa conferência intitulada "Market Economy and Ethics", proferida em Roma, a 23 de Novembro de 1985, Joseph Ratzinger disse que o declínio observado ao nível da ética poderia "levar a um colapso das leis do mercado".

Sobre estas temáticas, que levaram a uma revisão do texto, o Papa oferecerá um contributo incontornável para repensar uma economia dominada por paradigmas dominantes que se vieram a revelar um fracasso.

Ética e mercado não estão de costas viradas, para Bento XVI, e vários responsáveis da Igreja têm subscrito a posição de que a actual crise mostra, sobretudo, uma perda de valores. O ser humano não deve ser um escravo das regras de mercado ou, pior ainda, estar submetido à crença de que as leis desse mercado são boas em si mesmas e levam, necessariamente, ao bem, sem depender da moralidade de cada sujeito.

"Os dois pressupostos não estão completamente errados, como demonstram os sucessos da economia de mercado, mas não são aplicáveis sem limites nem justos em absoluto, como parece evidente pelos problemas da economia mundial actual", escrevia o Papa… há 24 anos.

Tal como Peter Koslowski, Bento XVI acredita que a economia não se rege por leis económicas, apenas, mas por homens. A falta de ética nas estruturas económicas teria levado, por isso, à actual situação de crise.

A liberdade económica não é, assim, uma condição suficiente em si mesma para o sucesso. Aliás, na linha da tradição da Igreja, o actual Papa não vê no capitalismo um modelo único para a economia, embora não entenda a actual crise como uma crise de sistema.

A Igreja assume-se como equidistante face ao capitalismo e ao marxismo, sistemas que Bento XVI acusa de terem fracassado, de um ponto de vista ideológico, por causa das suas promessas de criar um mundo melhor deixando Deus de lado ou "entre parênteses".

Documento antecipado

Num discurso aos congressistas da Fundação «Centesimus Annus – Pro Pontifice», a 13 de Junho deste ano, o Papa falava desta encíclica, destacando "s situação que vive neste momento a inteira humanidade".

Nesta ocasião, Bento XVI adiantava que "será publicada proximamente a minha Encíclica dedicada precisamente ao vasto tema da economia e do trabalho: nela serão postos em evidência aqueles que para nós, cristãos, são os objectivos que devem ser perseguidos e os valores que devem ser promovidos e defendidos incansavelmente, a fim de realizar uma convivência humana verdadeiramente livre e solidária".

Para Bento XVI, é fundamental perceber quais são os valores e as regras segundo as quais o mundo moderno se deveria "regular para realizar um novo modelo de desenvolvimento, mais atento às exigências da solidariedade e mais respeitador da dignidade humana".

Tal como João Paulo II, o actual Papa entende que a liberdade no sector da economia deve enquadrar-se "num sólido contexto jurídico que a ponha ao serviço da liberdade humana integral", uma liberdade responsável "cujo centro seja ético e religioso".

"De facto, a crise financeira e económica que atingiu os países industrializados, os emergentes e os que estão em vias de desenvolvimento, mostra de modo evidente como se devem reconsiderar certos paradigmas económico-financeiros que foram predominantes nos últimos anos", apontou.

Avareza e crise

Num encontro com o clero da Diocese de Roma, a 26 de Fevereiro de 2009, Bento XVI considera que a actual crise financeira e económica estava no centro dos "problemas do nosso tempo".

"Eu distinguiria entre dois níveis. O primeiro é o nível da macroeconomia, que depois se realiza e vai até ao último cidadão, o qual sente as consequências de uma construção errada. Naturalmente, denunciar isto é, um dever da Igreja", indicou.

Nesta ocasião, o Papa adiantou que "há muito tempo que preparamos uma Encíclica sobre estes pontos. E no longo caminho vejo como é difícil falar com competência, porque se não for enfrentada com competência uma determinada realidade económica não pode ser credível. E, por outro lado, é preciso falar também com uma grande consciência ética, digamos criada e despertada por uma consciência formada pelo Evangelho".

"Portanto é preciso denunciar estes erros fundamentais que agora são evidenciados pela queda dos grandes bancos americanos, os erros na base. No final, é a avareza humana como pecado ou, como diz a Carta aos Colossenses, avareza como idolatria", apontou.

Segundo Bento XVI, "devemos denunciar esta idolatria que vai contra o verdadeiro Deus e a falsificação da imagem de Deus com outro deus «dinheiro»".

"Devemos fazê-lo com coragem mas também concretamente, pois os grandes moralismos não ajudam se não forem substanciados com conhecimentos da realidade, que ajudam também a compreender o que se pode fazer concretamente para mudar pouco a pouco a situação. E, naturalmente, para o poder fazer, são necessários o conhecimento desta verdade e a boa vontade de todos", acrescentou.

Noutras várias ocasiões, o Papa defendeu que no actual cenário de crise a prioridade deve ir para "os trabalhadores e suas famílias", pedindo um "forte compromisso comum" para fazer face às dificuldades do momento.

Os bancos também não ficaram fora da mira do Papa, para quem é preciso que exista "solidariedade em relação às faixas mais enfraquecidas" da população e "apoio à actividade produtiva".

Bento XVI considera que este é "um tempo de dificuldade para muitas famílias" a que as instituições bancárias e de crédito devem estar atentas.

Como escreveu no início deste ano, o Papa quer que a Igreja aponte para "os novos aspectos da questão social, não só em extensão mas também em profundidade, no que se refere à identidade do homem e à sua relação com Deus. São princípios de doutrina social que tendem a esclarecer os vínculos entre pobreza e globalização e a orientar a acção para a construção da paz".

Para guiar a globalização, defende o Papa, é precisa uma "forte solidariedade global entre países ricos e países pobres, como também no âmbito interno de cada uma das nações, incluindo as ricas".

Agir moral

Tal como acontecia no magistério de João Paulo II, somos confrontados nas palavras de Bento XVI, eleito em 2005, com repetidas referências à questão do agir moral, da responsabilidade e da liberdade humanas.

No último Sínodo dos Bispos, em Outubro de 2008, o Papa falara a respeito da recente crise financeira internacional, assinalando que a mesma mostra a "futilidade" da corrida ao dinheiro e ao sucesso.

Perante os 253 delegados sinodais, vindos de todo o mundo, Bento XVI indicou que "a Palavra de Deus, mais do que qualquer outra palavra, é o fundamento de tudo, da verdadeira realidade", criticando quem constrói "sobre a areia", ou seja, quem pensa que "a matéria, as coisas sólidas que podemos tocar são a realidade mais segura".

Exemplificando, Bento XVI afirmou que "hoje vemos, com o desmoronamento dos grandes bancos, que o dinheiro desaparece, que não é nada, é uma realidade de «segunda ordem»".

E nem só de dinheiro deverá falar o Papa na sua terceira carta magna, onde devem ter lugar alertas conta os ataques à dignidade humana – uma questão sempre presente -, o terrorismo, questões ecológicas, a globalização e a luta contra a fome, entre outras. A cultura da vida e da paz, tanta vezes presente nos seus pronunciamentos, deve aqui ocupar um lugar privilegiado, face às novas problemáticas sociais e económicas.

A referência Populorum Progressio

Esta nova encíclica era esperada em 2007, nos 40 anos da publicação da grande Encíclica social de Deus Paulo VI, a Populorum progressio. Apesar dos vários motivos que levaram a que seja publicada apenas em 2009, o actual Papa faz questão de sublinhar que a sua carta tem em vista retomar o ensinamento do seu predecessor nas questões sociais.

Num discurso proferido em 2007, Bento XVI defendia que "neste texto, diversas vezes citado nos documentos sucessivos, aquele grande Pontífice já asseverava que «o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico»".

Na nova encíclica, espera-se que, como é tradição, o actual Papa passe em revista o ensinamento de quem o antecedeu, com destaque para Paulo VI e João Paulo II, que deram um grande impulso ao que hoje designamos como Doutrina Social da Igreja, desafiando divisões simplistas e redutoras como conservadores e liberais ou direita e esquerda.

Ao falar de Paulo VI, o Papa alemão indicou, há dois anos, que "a atenção às verdadeiras exigências do ser humano, o respeito pela dignidade de cada pessoa e a busca sincera do bem comum são os princípios inspiradores que é bom ter presentes, quando se programa o desenvolvimento de uma nação. Mas infelizmente, isto não acontece".

"A actual sociedade globalizada regista muitas vezes desequilíbrios paradoxais e dramáticos. Com efeito, quando consideramos o forte crescimento das taxas de crescimento económico, quando paramos para analisar as problemáticas ligadas ao progresso moderno, sem excluir a elevada poluição e o consumo irresponsável dos recursos naturais e ambientais, parece evidente que apenas um processo de globalização atento às exigências da solidariedade pode assegurar à humanidade um porvir de autêntico bem-estar e de paz estável para todos", defende Bento XVI.

Desenvolvimento integral

A questão do desenvolvimento tem merecido, da parte de Bento XVI, um olhar muito atento no contexto do fenómeno complexo que é a globalização.

Como ficou claro na Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2009, o Papa defende a necessidade de mudança na acção dos líderes políticos, num mundo que marginaliza milhões de pessoas não por falta de recursos, mas como consequência de fenómenos especulativos que colocam o lucro acima da dignidade humana. Como tem vindo a repetir, Bento XVI acredita que a actual crise pode ser uma oportunidade para reajustar as instituições políticas e económicas, de modo a garantir o acesso universal à alimentação e aos bens essenciais.

No seu histórico discurso na sede da ONU, em Abril de 2008, o Papa colocou na agenda internacional "questões de segurança, objectivos de desenvolvimento, redução das desigualdades locais e globais, protecção do ambiente, dos recursos e do clima", considerando que as mesmas "exigem que todos os responsáveis internacionais ajam conjuntamente e demonstrem uma rapidez no agir em boa fé, no respeito da lei e na promoção da solidariedade em relação às regiões mais débeis do planeta".

Um pensamento especial é sempre deixado para os países da África e de outras partes do mundo que permanecem à margem de um "autêntico progresso integral", e por isso correm o risco de sentir apenas os efeitos negativos da globalização.

A primeira viagem de Bento XVI a África, em Março deste ano, serviu para pedir iniciativas internacionais que favoreçam segurança, estabilidade e desenvolvimento. "É urgente e importante que a comunidade internacional coordene esforços para enfrentar a questão das alterações climáticas e cumpra os compromissos em prol do desenvolvimento, concretizando nomeadamente a promessa, muitas vezes repetida pelos países desenvolvidos, de destinarem 0,7% do seu PIB a ajudas oficiais ao desenvolvimento", declarou, nos Camarões.

Nesse país, entregou aos Bispos um documento com duras críticas às multinacionais que "invadem" África para apropriar-se dos recursos naturais, deixando danos significativos no meio ambiente. As próprias instituições financeiras internacionais foram colocadas em causa pelos efeitos "funestos" dos programas de desenvolvimento impostos a muitos países.

Já na sua primeira encíclica, Bento XVI indicava que "a Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça".

Pobreza

Para Bento XVI, combater a pobreza implica "olhar os pobres bem cientes da perspectiva que todos somos participantes de um único projecto divino: chamados a constituir uma única família, na qual todos – indivíduos, povos e nações – regulem o seu comportamento segundo os princípios de fraternidade e responsabilidade". Da assistência social, o Papa parte para a ideia de uma família global, marcada por relações de fraternidade e responsabilidade face a um código ético assumido por todos.

Nesta matéria, Bento XVI está a reforçar uma mudança de fundo na Doutrina Social da Igreja, ao defender a "cooperação nos planos económico e jurídico" em substituição de "políticas marcadamente assistencialistas".

Um exemplo desta mudança é a centralidade ocupada pelos temas económicos na Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2009. O Papa pede "uma correcta lógica económica por parte dos agentes do mercado internacional, uma correcta lógica política por parte dos agentes institucionais e uma correcta lógica participativa capaz de valorizar a sociedade civil local e internacional".

Bento XVI escreve que "a função objectivamente mais importante do mercado financeiro, que é a de sustentar a longo prazo a possibilidade de investimentos e consequentemente de desenvolvimento, parece hoje muito frágil: sofre as consequências negativas de um sistema de transacções financeiras – a nível nacional e global – baseadas sobre uma lógica de brevíssimo prazo, que busca o incremento do valor das actividades financeiras e se concentra na gestão técnica das diversas formas de risco".

O Papa requeria ainda "estímulos para se criarem instituições eficientes e participativas, bem como apoios para lutar contra a criminalidade e promover uma cultura da legalidade".

Partilhar:
Scroll to Top
Agência ECCLESIA

GRÁTIS
BAIXAR