Nos passos de Matteo Ricci

Padre Victor Silva, missionário espiritano

Há cinco anos, no meio de uma crise pandémica que nos encerrou em casa, abriram-se as portas para o nascimento de uma pequena comunidade católica chinesa em Lisboa. O ritmo diferente, em tempos de contingência, permitiu que algumas famílias se fossem conhecendo e organizando. Reunimos uma primeira vez numa comunidade das Servas do Espírito Santo, com a irmã Domínia Shen, chinesa, e mais três famílias católicas. Celebrámos a Eucaristia e partilhámos algumas ideias. Não esqueço o testemunho daquela mãe que, não falando quase nada da nossa língua, recitou diante de mim um Pai-Nosso e uma Avé-Maria num português perfeitamente claro e articulado. O facto de Portugal ser um país de forte tradição católica e gozar de liberdade religiosa pesou na decisão de para aqui emigrarem.

No dia 8 de novembro de 2020, reunimos no Seminário da Torre d’Aguilha, em S. Domingos de Rana, para celebrar os sacramentos da reconciliação e eucaristia com um grupo de pouco mais de 30 pessoas. Teresa, a responsável do grupo, recorda assim o momento: “No séc. XVI, foi de Lisboa que partiram para o Oriente missionários, dando início à fé católica entre o povo chinês. Hoje, os fiéis chineses que vivem em Portugal, com as lâmpadas acesas e azeite na almotolia, dão glória a Deus, içando a vela da sua fé.” Hoje, a comunidade continua a celebrar a Eucaristia duas vezes por mês, na Igreja de São Tomás de Aquino, em Lisboa, para além de promover muitas outras atividades em conjunto, virtuais e presenciais, e conta agora também com a colaboração do P. James Liu, missionário verbita chinês.

Este verão, não resisti ao convite de duas das famílias fundadoras desta comunidade a visitar as suas comunidades de origem. Foi uma oportunidade muito especial para mim. Trabalhei onze anos em Taiwan, sobretudo junto de pessoas originárias de diversas partes da China continental cujas famílias se refugiaram em Taiwan durante a guerra civil chinesa, em meados do século passado. Estive diversas vezes às portas da China continental, mas sem oportunidade de entrar.

Viajei para Hanzhou, na província de Zhejiang, de onde são oriundos grande parte dos chineses que se foram estabelecendo em Portugal há várias décadas. Daí parti para Nanjing, terra de uma das famílias da nossa comunidade. Por aquela terra passaram também, há mais de 400 anos, os pés de Matteo Ricci, missionário jesuíta, num fascinante itinerário de encontro entre o ocidente e a china e de enraizamento da fé cristã naquela terra. Foi ali também que cresceu a amizade entre Matteo Ricci e Xu Guangqi que se haveria de converter ao cristianismo, adotando o nome de Paulo, e tornar um dos pilares do catolicismo naquele país. Perto dali, em Xangai, tive a oportunidade de visitar o seu túmulo, num belo jardim com o seu nome, perto da Sé Catedral, e testemunhar o vasto leque de instituições académicas, sociais e religiosas criadas, ao longo dos séculos, pelos missionários e por estas primeiras comunidades locais. O trabalho de Matteo Ricci e seus colegas não se limitou a exportar os conhecimentos europeus, mas também a possibilitar aos europeus um melhor conhecimento da cultura oriental, nomeadamente com a tradução para latim dos “Quatro livros” do cânone confuciano.

Mais a norte, continuamos a mergulhar na história milenar deste país que parece mais um continente, caminhando através das célebres muralhas da China, nos arredores de Pequim, ou através do exército de terracota, na antiga capital Xi An. Mas o que me encheu mais o coração foi a tranquilidade do convívio com mais uma família alargada de acolhimento, numa pequena aldeia agrícola, algures na província de Hebei, com quem tive oportunidade de celebrar em sua casa e escutar o seu comovente testemunho de fé. Uma fé alimentada pela oração diária, com um espaço generoso em casa especialmente a ela dedicado, e traduzida num compromisso muito concreto e contínuo junto dos pobres mais pobres. No meio de grandes tensões ao nível das relações institucionais, de grandes desafios ao nível da formação do clero e religiosos e da relação com a igreja universal, de grande pressão de vigilância e controlo, é confortante perceber a semente do Evangelho que sobrevive a tudo isto e alimenta o coração dos fiéis que a continuam a procurar na verdade.

Padre Victor Silva, missionário espiritano

 

Em Parceria com a Missão PRESS (mensalmente no dia 24) 

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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