Jorge Pires Ferreira, diocese de Aveiro
Numa leitura recente dei com os “Dez Mandamentos Ficção Policial”. Obviamente, a formulação “Dez Mandamentos” remete para a cultura judaico-cristã, pelo que quis saber algo mais sobre o autor deste decálogo, um tal de Ronald Knox. E às primeiras pesquisas, lá apareceu um senhor vestido de clérigo. Padre, portanto. Anglicano? Não, católico. Ronald Knox morreu “monsenhor” em 1957. Título dado por Pio XII. Para tal honra deve ter contribuído o seu trabalho como capelão em Oxford e principalmente a tradução da Bíblia para inglês a partir da Vulgata. As suas traduções dos textos bíblicos foram usadas na litúrgica católica em Inglaterra até à década de 1980.
Mas há outra coisa que se deve ao padre Knox. Não tem a ver com liturgia, mas para alguns é quase uma religião. Foi ele o inventor, ou pelo menos o codificador do policial moderno. Os seus “Dez Mandamentos Ficção Policial” como que se tornaram uma cartilha para os escritores de romances policiais, mesmo que somente para os quebrar ou subverter. Por curiosidade ou, quem sabe, para o leitor se aventurar no género, aqui ficam, conforme aparecem no blogue Torrente Literária (e algo modificados a partir do confronto com a formulação de www.writingclasses.com):
1) O criminoso deve ser mencionado na primeira parte da história, mas não deve ser alguém que chame a atenção do leitor.
2) Todas os factos sobrenaturais são descartados como uma coisa natural.
3) Não mais do que um quarto ou passagem secreta é permitido.
4) Venenos desconhecidos não podem ser utilizados, nem qualquer aparelho que exija uma longa explicação científica no final.
5) Nenhum chinês deve figurar na história.
6) Nenhum acidente ou acaso deve sempre favorecer o detetive, nem ele deve ter uma intuição inexplicável.
7) O próprio detetive não pode cometer o crime.
8) O detetive não deve seguir pistas que não sejam apresentadas ao leitor.
9) O amigo estúpido do detetive, o típico Watson, não deve esconder quaisquer pensamentos que passem pela sua mente. A sua inteligência deve estar um pouco, mas muito pouco, aquém da do leitor médio.
10) Não utilizar os recursos dos gémeos ou do sósia, a menos que a história permita a presença deles.
É necessária uma observação relativamente ao 5.º Mandamento, que o livro que me deu a conhecer o decálogo detectivesco omitiu por ser “formulação culturalmente datada” (chega de suspense, isto não é uma história policial; o livro das minhas leituras recentes é “Na minha família, todos mataram alguém”, de Benjamin Stevenson, nas edições Asa). Diz o blogue Torrente Literária que, na época em que o decálogo foi publicado, “havia um personagem muito popular, Dr. Fu Manchu, génio oriental do crime, criado por Sax Rohmer”. Omite-se o 5.º Mandamento, portanto, para não fomentar o preconceito, que é uma espécie de matar.
Ronald Knox foi, também, escritor de policiais. Não será lembrado por muitos, mas teve alguma fama como autor no tempo em que outro padre, não por dedução, como Sherlock Holmes, mas por indução e por conhecer a mente humana (e o coração), revelava os verdeiros autores dos crimes, o célebre Father Brown, criado por Chesterton. Não adianta aqui desenvolver muito o argumento. Isto está tudo ligado. Ambos, Chesterton e Knox, são católicos convertidos do anglicanismo. Knox converteu-se porque admirava o percurso intelectual do ainda anglicano Chesterton. E quando Chesterton aderiu à Igreja Católica, disse que foi influenciado pela decisão de Knox. Eram amigos. E faziam parte da sociedade secreta de escritores de policiais chamada “Detection Clube”, que incluía, imaginem, Agatha Christie e Dorothy L. Sayers. Quando Chesterton morreu, em 1936, o Padre Knox fez o elogio fúnebre na Catedral de Westminster. Era a fé católica que os unia, não os policiais. Mas sendo o romance policial basicamente a descoberta do autor do mal para repor algum bem, é capaz de haver algum apelo divino neste género literário.
Jorge Pires Ferreira
Aveiro