No aniversário do Luís Miguel Cintra

Lígia Silveira, Agência ECCLESIA

A primeira vez que escutei as palavras de Jesus ditas por Luís Miguel Cintra estava na Capela do Rato, em Lisboa. Desafiado pelo então padre Tolentino, o encenador lia o livro do Eclesiastes e aquecia-me com a voz densamente bem colocada, respirada, levando-me no encanto de um poema ali partilhado. Mais tarde, o Cântico dos Cânticos e novamente a sensação que a leitura pessoal era doada apenas para mim.

Foi a partir destas duas experiências que surgiu o desafio de convidar Luís Miguel Cintra a dar voz à leitura do Evangelho que a cada sexta-feira é escutado no programa Ecclesia, emitido na RTP2. Mas será que ele aceitaria?

«Gostaria muito».

Sentado no estúdio, Luís Miguel Cintra, qual estudante a iniciar o seu percurso, ensaiava e repetia sem cessar na procura da única entoação possível que oferecesse luz sobre as palavras de Jesus, à procura do espaço do silêncio, da respiração, percebendo cada letra daquelas palavras, sem as trair ou encurtar. Acredito muito que aqueles momentos ofereceram mais olhares sobre o amor, a compreensão, a empatia, a relação, do que tantas outras vezes escutados nos altares. Também a ele.

Assim foi durante os quase três anos que o covid-19 interrompeu, nas idas e vindas das boleias à conversa, dos encontros abraçados, da casa que sentíamos quando nos encontrávamos.

Luís Miguel Cintra celebra a sua vida neste dia 29 de abril. Mas não só ele – nós com ele! E não será apenas pelo mundo que nos ofereceu nos palcos, pela sua vida «que coincidiu com o teatro», pelas salas, e por aquela sala chamada Cornucópia onde passou e «onde se vê e ouve tão bem o que é um ator a representar». O Luís ofereceu-me olhares intemporais que indagam a vida, Deus nela, Deus connosco e nós sem Ele.

Retirado, Luís Miguel Cintra não cessa de nos colocar perante a vida, o que procurou fazer da sua e de nos confrontar com a nossa. O seu corpo, lamentavelmente não acompanha os sonhos e projetos. Mas porque gosta de pessoas – gosta muito de boas pessoas – convidou-nos a entrar no seu «Pequeno Livro Arquivo», recentemente publicado, onde partilha «pensamentos, palavras, atos e omissões».

«Cheguei a velho», escreveu. Escrevo eu que cumula a sabedoria de quem conhece todos os lados do ser humano, o verso e o reverso, mas deixa lugar para se emocionar com o belo – «choro menos quando estou triste que quando vejo uma coisa muito linda». O cabelo branco instalou-se mas mantém-se o olhar limpo de quem acredita que a simples generosidade pode ainda salvar o mundo.

E o quanto precisamos acreditar nisso!

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