“Ninguém vai de mãos vazias…”

Irmã Beta Almendra, em missão em Wau, no Sudão do Sul

Foto: Fundação AIS

Há fome e desespero no Sudão do Sul, um país atormentado pela pobreza e violência. A Irmã Beta Almendra, uma comboniana na Diocese de Wau, esteve na Fundação AIS em Lisboa e falou longamente sobre o seu trabalho, sobre ser missionária no mais jovem país do mundo, e do medo de se voltar, “a qualquer momento”, ao drama da guerra civil. Mas nada disso parece assustar esta portuguesa que diz ser “muito feliz por ser missionária” e que ama o povo do Sudão do Sul.

“A situação no Sudão do Sul está muito, muito insegura”, diz Elisabete Almendra, mais conhecida como Irmã Beta. “A guerra civil pode regressar a qualquer momento”, alerta a religiosa portuguesa. Em entrevista à Fundação AIS em Lisboa, numa breve pausa do trabalho missionário que desenvolve na Diocese de Wau, a comboniana explica que na origem do conflito está a questão étnica. “Esta é uma situação muito clara”, diz. “O presidente é de uma tribo e o vice-presidente é de outra tribo e são as duas maiores tribos do país, as que têm mais força”, acrescenta. “E são inimigos por natureza.” De facto, a curta história do Sudão do Sul – ganhou a independência em 2011 e continua a ser o país mais novo do mundo – está marcada pela violência da guerra que, na verdade, é um conflito com raízes étnicas, entre as forças leais ao presidente Salva Kiir, da etnia Dinka, e ao vice-presidente Riek Machar, que pertence ao povo Nuer. Essa guerra, que custou a vida a mais de 400 mil pessoas, começou em 2013 e prolongou-se até 2018, quando foi assinado um acordo de paz. Um acordo que, sublinha a religiosa portuguesa, pode ser substituído a qualquer momento pelo combate nas ruas, nas aldeias e cidades. “Há partes do Sudão do Sul que já estão constantemente em lutas, em conflitos”, reconhece.

“Ninguém vai de mãos vazias…”

Como se não bastasse a ameaça ao regresso da guerra, o Sudão do Sul, que é também um país muito pobre, tem vindo a acolher milhares de pessoas que atravessam a fronteira e que fogem elas próprias da guerra que está a consumir o vizinho Sudão. Tudo isto ajuda a compreender por que razão as Nações Unidas consideram que a crise humanitária que está a afectar esta região de África é uma das mais severas em todo o globo. Isso reflecte-se já na vida das comunidades locais no Sudão do Sul. É assim também na Diocese de Wau, onde muitas pessoas conseguem apenas fazer uma refeição por dia. Pobreza que se traduz em muitas mãos que batem à porta das Irmãs Combonianas que, muitas vezes, sentem elas próprias a impotência de quem não tem também muito para oferecer. “Tentamos dar sempre um pedaço de pão… Quando era a altura das mangas, andávamos a apanhar mangas para dar. Não era a quantidade [suficiente] para ajudar a família, porque muita gente vem e pede ajuda também para a família, mas sempre havia alguma coisa para dar, um quilo de açúcar ou algo assim. Ninguém vai de mãos vazias. Mas já sabemos que a realidade é muito dura.”

“O que eles sabem fazer é lutar…”

A realidade é dura e chega a ser desesperante. E já houve dias em que a Irmã Beta sucumbiu às próprias lágrimas. “Quantas vezes… Choramos porque as coisas não correm bem e parece até que não estamos a fazer o nosso melhor, mas a realidade é muito dura em todos os aspectos”, confessa. A fome, a pobreza em geral, são fantasmas que ensombram a vida na região, a que acresce, agora, a ameaça do regresso da guerra civil. E há tantas pessoas que trazem já os traumas da guerra dentro de si. “O que eles sabem fazer é lutar… Desde que nasceram que só viram a guerra à sua volta. Estão traumatizados”, diz a irmã, reconhecendo que isto é um problema que demora tempo, às vezes muito tempo, até ser ultrapassado. “As casas constroem-se, fisicamente as coisas constroem-se, mas para se voltar a construir um ser humano isso demora muito tempo. Eu vejo estas pessoas realmente como traumatizados da guerra”, afirma a Irmã Beta.

“Nosso Senhor dá-nos força…”

No entanto, apesar de todos os problemas, de todas as dificuldades, apesar de tantas mãos a pedir ajuda e de haver tão pouco para distribuir, o balanço que a Irmã Beta Almendra faz dos quatro anos e meio que leva já de missão no Sudão do Sul não podia ser melhor. “Sou muito feliz por ser missionária”, diz, com um sorriso que lhe vem de dentro. “Mesmo quando estamos no meio de grandes dramas humanitários, Nosso Senhor dá-nos realmente força. Dá-nos a força. Dá-nos a força para estarmos e estarmos bem e a não querermos outra vida”, diz ainda com toda a convicção. A Irmã Beta Almendra está empenhada em diversos projectos, alguns apoiados pela Fundação AIS, nomeadamente ao nível da pastoral familiar, e que envolvem meninas e mulheres. Através do acesso à educação, as irmãs procuram criar as ferramentas necessárias para um futuro sem pobreza e violência. Mas nada se faz sem um absoluto empenhamento pessoal. É preciso estar presente, é necessário falar com as pessoas que precisam de desabafar, mas é também fundamental saber ouvir e fazer sempre tudo com muito amor. “A grande diferença é este amar, estarmos ali presentes com amor. É só isso, é só isso. É preciso escolas, hospitais, mas realmente precisamos de ouvir, de escutar, de dar um abraço. Podemos resolver problemas, fazer um hospital construir uma escola… mas, no fundo, o importante é estarmos com o povo”, afirma.

“Precisamos dos benfeitores…”

O exemplo desta simpática irmã portuguesa tem ajudado a contagiar sorrisos que ajudam a trazer novas vocações para a Igreja. O trabalho dos padres, das religiosas, dos catequistas tem vindo a ser semente que cai em terreno fértil neste país e concretamente na Diocese de Wau. “No Sudão do Sul há vocações, há jovens que querem ser padres e freiras, e a Igreja local tem que crescer, e nós estamos lá para isso, para ajudar a Igreja a acrescer. Nós somos pontes, os missionários são pontes que ajudam estas coisas a acontecer…” No meio de tudo isto, no meio de todas as necessidades, há sempre a certeza da mão amiga da Fundação AIS que também está presente na Diocese de Wau, o que tem feito toda a diferença. “O que eu digo sempre é muito obrigada por estarmos juntos, por caminharmos juntos”, diz a religiosa como agradecimento a toda a ajuda, a toda a solidariedade que os benfeitores da AIS têm canalizado para o Sudão do Sul. “Há uns que têm pés e vão, e outros que têm mãos e rezam. E é assim, todos juntos, que fazemos a missão. Não estou sozinha, não estamos sozinhos. Lá, no Sudão do Sul, precisamos dos benfeitores, da ajuda. E rezamos muito por todos. E peço que rezem pela paz, rezem para que continuemos em paz, pois sentimos que realmente as coisas podem ficar muito complicadas, mas estamos juntos. Eu conto realmente com a oração das pessoas de Portugal e do mundo inteiro, para nos ajudarem a promover a paz”, diz, a concluir, a Irmã Elisabete Almendra.

Paulo Aido | www.fundacao-ais.pt

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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