Se calhar, para o Estado, já nem existem. Foram abatidos, como se faz como se faz aos carros antigos que acabaram abandonados Escondem-se em becos, nas sombras das esquinas dos prédios, nos bancos de jardim. A cidade passa por eles e normalmente não os vê. Tapados por mantas ou apenas por papelões, os sem-abrigo atravessam a noite e depois, quando o dia clareia, desaguam novamente nas ruas, quase sempre sem destino certo, quase sempre à volta das mesmas ruas, pelos mesmos bairros, com as mesmas roupas. Ser sem-abrigo não é uma fatalidade. Ninguém nasce sem-abrigo. Todos aqueles que vagueiam pela cidade de Lisboa, por exemplo, onde estão contabilizados cerca de mil sem-abrigo, já foram felizes em tempos. Pode ter sido quase há mil anos, apetece dizer, pode ter sido apenas ontem, mas já foram pessoas integradas na sociedade, com família, emprego, sonhos e desafios Já foram crianças e cresceram. Um dia, porém, as coisas começaram a desmoronar. A perda de emprego, um divórcio, qualquer tragédia pessoal e pronto. Há os sem-abrigo que vagueiam pelas ruas há tempo demais, que já perderam o sentido do calendário. De qualquer forma, é sempre há tempo demais. Mesmo que tenha sido ontem o primeiro dia, a primeira vez que se cobriram com um cobertor e adormeceram num banco de jardim. Lisboa tem muitos destes recantos. A Praça da Alegria, o Jardim Constantino, a Avenida da Liberdade… Todas as noites – sem pausas para sábados ou domingos, dias santos ou feriados – os voluntários da Comunidade Vida e Paz (tal como de outras instituições de solidariedade) caminham pelas ruas , em trajectos pré-definidos, e oferecem a cada sem-abrigo um saco com comida e – o mais importante de tudo, a sua disponibilidade para ouvir, para dois dedos de conversa, para tentarem encaminhar quem está na rua para alguns dos centros de acolhimento que a instituição possui. Desde há cerca de meia dúzia de anos que colaboro com a Comunidade Vida e Paz. Pertenço à Volta B2. Há, todas as noites, três equipas a percorrer a cidade. A nossa equipa, como qualquer das restantes, efectua duas “voltas” por mês. No nosso trajecto, neste convívio de tantos anos, já fizemos alguns amigos. Há pessoas que já conhecemos de nome e a história. Há encontros que nos deixam felizes, como quando reencontramos alguém que já não víamos há um par de semanas. O senhor Abel, a dona Rosa, a dona Cremilde, o senhor António… podíamos multiplicar estes nomes mil cento e oitenta e sete vezes. Segundo a autarquia da capital, este é o número total da população dos sem-abrigo que “vivem” em Lisboa. Muitos destes cidadãos já não possuem papéis, bilhete de identidade, evidentemente que não têm cartão de contribuinte, ou de saúde. Se calhar, para o Estado, já nem existem. Foram abatidos como se faz aos carros antigos que acabaram abandonados numa rua qualquer. Foram abatidos e perderam a matrícula. Resta-lhes, tantas vezes, apenas o nome. Para os voluntários da Comunidade Vida e Paz, porém, isso basta. Quando a carrinha chega a um local pré determinado, como é, por exemplo, o Toni dos Bifes, um café junto ao Centro Comercial Monumental, logo é abordada por alguns sem-abrigo. Já ali estive a ajudar a distribuir comida – e às vezes, algumas peças de roupa – a apenas dez ou 15 pessoas. Já lá estive um dia ingrato de Inverno carregado a ajudar a minorar a fome a mais de meia centena de pessoas. Todas as voltas são parecidas e todas são únicas. Um dia, não é possível esconder esta memória, no jardim de São Pedro de Alcântara – antes das obras de beneficiação que autarquia promoveu no local –, fui dar uma volta pelo espaço, pois sabíamos que por ali costumavam estar algumas pessoas a dormir, alguns deles prováveis toxicodependentes. Por mero acaso, fomos até uma das extremidades do jardim. Do pouco que a pouca luz revelava, não se encontrava ali ninguém. Apesar disso, fomos. Uma das paredes, reparámos então, estava meio esburacada. Um de nós acercou-se do buraco, que não media mais do que uns vinte centímetros de diâmetro, mais coisa menos coisa, e gritou lá para dentro se estava ali alguém. Estava. Eram três homens e precisavam de comida e de alguma roupa. Como esquecer, também, a primeira vez, o choque de me aperceber que por baixo da Praça de Espanha, num túnel que atravessa o largo relvado, “vivem” três homens?! Nem sei o que mais me marcou. Se o choque daquela realidade, se o cheiro nauseabundo que dali partia, se a confrangedora fragilidade em que aqueles homens estavam mergulhados. Às vezes, quando voltamos para casa, o relógio marca uma e tal, duas e tal da manhã, não se consegue esconder algum sobressalto interior. Afinal, voltamos para casa e eles continuam ali, numa esquina qualquer. E eles somos nós também. Basta um pequeno tropeção na vida. Uma crise económica mais prolongada, o espectro do desemprego, a doença, sabe-se lá o quê… O mais importante, em cada “volta” é ajudar a devolver a dignidade da pessoa humana a cada um dos sem-abrigo. É preciso explicar que não se nasce assim e essa não pode ser a condição para o resto dos nossos dias. O saco de comida que oferecemos é apenas o pretexto. Paulo Aido, jornalista