Natal: ‘Se Eu vos amei, porque não vos amais vós?’

Luís Silva, Diocese de Aveiro

Quando deixo o Natal contemplar-se em mim mesmo, mais íntimo a mim do que eu mesmo (qual Agostinho!), renovo-me e renasço.

O acontecimento da encarnação ilumina. Não apenas porque, naquela noite, se fala, permanentemente, de Luz. ‘O mundo viu uma grande luz’. Uma estrela guia os magos. De luz se enchem as vozes dos pastores…
É por isso e por tudo o mais…

A grande mensagem vem-nos dita na fragilidade da divindade encarnada, porque é isso encarnar: é assumir a carne, as dores, as misérias, mas não para nelas permanecer… Mas sem as negar! – Precisamos de vincar.

Repetidamente, a encarnação foi tentadoramente negada por aqueles que apenas guardavam do cristianismo uma parte. A sedução é a de a esquecer, dando-a como superada. A encarnação é deixada para trás como apêndice de um movimento que parece ser só de elevação.

Mas, antes de nos elevar, Deus rebaixou-se. E esse é o movimento que nos seduz esquecer. Tentadoramente, desde sempre, quisemos elevar-nos sem o movimento kenótico (de ‘abaixamento’).
Doce sedução…

Daniel Faria, um poeta ímpar, recorda-nos esse movimento:
‘Amo-te como um planeta em rotação difusa
E quero parar como o servo colado ao chão.
Frágil cerâmica de poros soprados no teu hálito
Vasilha que ergues em tua mão de oleiro
Cálice que não pudeste afastar de ti.
(Daniel Faria, Dos líquidos)

Somos a vasilha, frágil cerâmica por cujos poros insuflou Deus o seu espírito.
A tentação gnóstica (que, ao recusar a matéria, o corpo, elimina o princípio da individuação, da identidade) é de sempre. Queremo-nos sem limites, sem fragilidades, sem ter de passar pelo limite para caminhar para o infinito. Desejo de um infinito sem relativo, de um sonho sem realidade…

Doce sedução renovada, nestes tempos em que nos rejeitamos no que somos, na história que fizemos, no caminho que percorremos, nos limites com que os confrontamos. Queremo-nos sem nos sermos.
Mas desta perigosa sedução nos falam as vozes proféticas que voltam a dizer-nos qual o autêntico sacrifício: não o que se curva perante altares ‘desencarnados’, mas aquele que se suja nas lamas da existência.

Uma lúcida nota, ‘Antiqua et nova’, dos Dicastérios para a Doutrina da Fé e para a Cultura e Educação, ao discutir as oportunidades e desafios da Inteligência artificial, reafirma que ‘o pensamento cristão considera as faculdades intelectuais no quadro de uma antropologia integral que concebe o ser humano como um ser essencialmente corpóreo. Na pessoa humana, o espírito e a matéria «não são duas naturezas unidas, mas a sua união forma uma única natureza». Por outras palavras, a alma não é a “parte” imaterial da pessoa contida num corpo, assim como este não é o invólucro exterior de um “núcleo” subtil e intangível, mas é o ser humano inteiro que é, ao mesmo tempo, material e espiritual.’ (n.º16)

Não há homem numa ‘alma’ sem corpo como não há homem num corpo sem alma. Ele é o elástico tendido entre as duas pontas presas. Sem essa tensão, teremos, eventualmente, anjos, mas não Homem; animais, mas não Homem.
Deus afirma-nos, sussurra-nos, constantemente, ao ouvido, que, pela Sua encarnação, mostrou-nos o amor que nos tem, na integralidade do que somos: ‘Ah, como te amei! Ah, como te amo! E, porque te amei, porque te amo, fiz-me um contigo, para que percebesses que a ti amo. Não esperei por ti; não esperei que te libertasses do que és, porque foi a ti que amei, porque é a ti que amo.’
E, porém, fugimos, constantemente, do que somos, de quem somos. Negamo-nos. Queremos ser o que não somos, géneros misturados, géneros trocados, narrativas substituídas. Andamos errantes, porque recusamos ver as pegadas que os nossos pés deixaram vincadas no pó.

Somos ‘espírito encarnado’, mas desejamo-nos, repetidamente, espírito desencarnado. Sonhamo-nos sem corpo, sem identidade, fundidos num etéreo ‘cosmos’ sem nomes nem identidades.
Mas o mundo nascido do Natal é um mundo de ‘eus’ reconhecidos no fontal encontro com ‘tus’. Olhos nos olhos. Porque só de corpo se faz um olhar. ‘Tus’ com nomes desde o ventre materno, com cheiro único, com olhar singular, com caminhar identificado antes de o vermos, inconfundível no seu existir. Até ao último suspiro do nosso existir de carne feito, carne que transfigurada, nos permitirá continuar únicos quando a carne já não se fizer de dores ou sofrimento, mas de limites transcendidos. Nos estigmas do ressuscitado, une-se o nascer e o morrer, o viver e o sucumbir, mas sem que nenhum rejeite o outro: a vida é caminho. O ressuscitado é o Menino frágil. Naquelas frágeis mãos e pés se preparam os estigmas ressuscitados. Tudo é elevado, porque primeiramente se ‘abaixou’ no tempo e no aqui. Na noite do natal onde a luz tornou a noite dia, antecipou-se o dia que, pelo meio da tarde, o dia se fez noite. No compadecer-se de Deus, fomos amados como somos: feitos do húmus frágil e vulnerável. Nele, somos! Somos ‘e-finitos’, seres que vivem a partir da fragilidade, da vulnerabilidade que nos une uns aos outros, que nos irmana, que nos comuniona (origina comunhão). Um outro mundo nasce do Natal… O dos ‘humanos’ (que nascem do ‘húmus’!).

‘Ah, como vos amei!
Mas porque não vos amais vós?’

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