Como é que se celebra o Natal em situação religiosa minoritária? Mais concretamente num país muçulmano?
Esta pergunta que me fazem de vez em quando, por ser cristão originário do Egipto, merece de entrada um esclarecimento acerca do sentido de celebrar?
Se é o frenesim comercial e decorativo que se conhece nos países ditos cristãos, ou ainda as encenações dos Pais Natais, das Árvores do Natal e da panóplia de trocas de prendas ou de boas festas, etc.? Ou a celebração litúrgica e interior, incluindo o tempo preparativo do Advento?
É que, em termos estritamente cristãos, parece-me existir uma grande analogia entre a Europa ou as Américas “pagãs” e consumistas e – digamos – o Médio Oriente maioritariamente muçulmano. Em ambos os mundos se vive o verdadeiro cristianismo em contexto “minoritário”! Por cá e por lá o que se deve comemorar é o nascimento do Menino que veio mudar o mundo e acordar as consciências… A celebração religiosa deveria implicar, antes de tudo, a contemplação colectiva e individual deste “mistério-sacramento” e a consequente mudança dos parâme-tros da nossa vida…
Para além das celebrações enquanto tais, o povo cristão deve saber viver os seus ritos e a sua fé, a sua visão do mundo, como testemunho duma realidade de facto plasmada nas entranhas da terra e funda no coração dos humanos, se bem que de modo não aparente. Como é então que vejo e posso viver a mensagem natalícia num meio muçulmano, onde impera uma imagem de Deus essencialmente transcendente e omnipotente? Onde a crença num Filho de Deus feito homem soa ao politeísmo e à blasfémia, passível de retaliação violenta?
Em primeiro lugar, há que considerar que, no livro sagrado dos muçulmanos, “Jesus filho de Maria” é tido como um profeta muito particular. Ele é “Sua palavra”, “um espírito dEle” que foi “soprado” no seio da virgem Maria, ela própria descendente da família do profeta Omrán. Isa ’bnu Maryam fez milagres inacreditáveis desde a tenra idade! Mas sobretudo, ele e a sua mãe foram as únicas criaturas que foram geradas sem “serem tocadas por Iblís (o Diabo)”. Há que frisar, logo aqui, neste preciso dia da N.S. da Conceição, como é que os muçulmanos acreditam, desde os alvores do século VII, na “imaculada concepção” da Virgem Maria, isto é, mais que doze séculos antes da proclamação católico-romana do respectivo dogma (1854)!
Ora bem, o Natal é simplesmente a comemoração do nascimento desse profeta “misterioso”! Celebra-se tal como os muçulmanos costumam celebrar o nascimento do profeta Muhâmad na festa do Múlid al-Nábi (prática inaugurada apenas no século IX, por inspiração da prática cristã então vigente). Contudo, para os cristãos, não se trata apenas de celebrar o aniversário do seu “profeta”. Celebra-se o mistério do Deus que se fez homem, assumindo ser pequeno, fraco, frágil e vulnerável (perseguido por Herodes…), convidando à ternura materna e à compaixão.
Ora isto deveria tocar todo o muçulmano, pois ele invoca continuamente Deus com “o todo clemente e misericordioso”: al-rahmán al-rahím – palavras que têm a sua origem no termo rahm, o útero materno, a matriz!
Afinal, com o Natal cristão, convida-se a celebrar o mistério do amor que liga o Deus-Criador, transcendente e omnipotente, à sua humilde e “infanta” criatura. Convida-se a rejeitar toda a vanglória e o orgulho, a prepotência e a violência. A desenvolver a bondade e a solidariedade, a confiança na misericórdia de Deus (outro sentido do taslím, ‘submissão e entrega indefesa’…) para ultrapassar as nossas fragilidades e limites, a nós todos e todas.
Adel Sidarus (Évora),
professor de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade de Évora