«Não podemos ter um salário mínimo em que todo ele é para pagar a habitação»

Depois de uma semana em que foi publicado em Diário da República o Plano Nacional de Combate à Pobreza, e em que se assinalou o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia, Elizabeth Santos, do Observatório Nacional de Luta Contra a Pobreza da Rede Europeia Anti-Pobreza

Foto: Paulo Teixeira/RR

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

 

A estratégia de combate à pobreza inclui um conjunto superior a 270 medidas e a sua coordenadora já garantiu numa entrevista à Renascença que se trata de um processo dinâmico, podendo o governo ser obrigado a adotar outras ações que não estão previstas no plano agora apresentado. Pergunto-lhe, numa primeira análise, encontra desde já a necessidade de se atualizar o plano?

Há, de facto, algumas medidas que correm o risco de já não serem atuais. Uma delas é, por exemplo, o acordo que foi feito para o aumento do salário mínimo. Esse acordo é importante, é importante garantirmos uma negociação e um acordo que permita, ao longo do tempo, aumentar o valor do salário mínimo nacional. Mas, tendo em conta o aumento do custo de vida, da inflação, dos juros, aquilo que é o encargo com a habitação, por exemplo, pensarmos em 900 euros em 2026, será, com certeza, muito pouco para melhorar, de facto, a qualidade de vida das pessoas.

 

Quanto mais deveria ser?

Deveria ser muito mais. Isso depende também, obviamente, de como aumentar o preço das habitações. Neste momento, já encontramos a T1 a 900 euros. Nós não podemos ter um salário mínimo em que todo ele é para pagar a habitação, porque isso é inconcebível.

Por isso, tem de haver aqui um equilíbrio entre as políticas para a habitação, para conseguir garantir preços que correspondam aos salários que existem em Portugal, juntamente com perceber como evolui a inflação e os juros, para perceber como é que temos de aumentar o salário mínimo.

Agora, tem de ser uma atenção a ter.  Não podemos ficar satisfeitos com o valor de 900 euros para 2026.

 

Vamos então desde já ao tema da habitação. Sabemos que para muitas pessoas se tornou um autêntico flagelo na sociedade portuguesa, em particular para os mais vulneráveis.  

É preciso ir mais longe na busca de soluções para estas pessoas?

Sem dúvida nenhuma. Nós estamos perante um contexto em que o problema da habitação está a influenciar e a afetar todas as pessoas. Mas temos, por exemplo, a taxa de sobrecarga, se olharmos para a taxa de sobrecarga do custo de habitação, é 5% o valor. Parece ser muito pouco, não é? Mas temos que pensar que em Portugal, mais de 70% das pessoas vivem em casa própria. E mais de 40% vivem em casa própria sem custos com habitação. Já está pago o crédito. Por isso, quando analisamos essa taxa, tem impacto perceber qual a quantidade de pessoas que não têm custos com habitação. Quando olhamos depois para grupos específicos, essa taxa de sobrecarga aumenta claramente. Pensando, por exemplo, nas famílias monoparentais, ela passa para 14%.

Se pensarmos nas famílias compostas apenas por um indivíduo, ela passa para 10%.

Por isso, há grupos que estão a viver com uma intensidade muito maior o aumento da habitação, e as pessoas abaixo do nível de pobreza estão; o que faz com que entrem ou sejam remetidas para habitações com piores condições de vida, com humidade, com outros problemas que vai ter impacto e problemas de saúde, por exemplo.

As famílias com filhos, é uma grande preocupação porque não só são as famílias que têm maior risco de pobreza, mas que depois vivem todas essas situações. São as que têm maior atrasos no pagamento de rendas, no pagamento de água, luz, serviços, taxa de sobrecarga. Há um conjunto de outros indicadores em que essas famílias vivenciam situações muito mais precárias.

 

Então, não estamos a saber resolver bem esta questão da habitação. E, inclusive, temos uma polêmica à volta das medidas definidas pelo governo, que também, provavelmente, em nada ajuda na procura de soluções eficazes e duradouras para este problema?

Sim, nós precisamos, em Portugal precisamos caminhar para consensos, consensos a nível do combate à pobreza e da solução dos problemas.

Nós ainda não temos a capacidade de perceber a questão da pobreza como um problema de todos e de toda a sociedade. É uma mudança de mentalidade que tem de mudar. Nós temos de compreender que, quando falamos em pobreza, não é um problema dos pobres, é um problema da sociedade.

A causa não está nos pobres, está no funcionamento da sociedade e tem de ser resolvido por todas as pessoas.  Tem de haver um envolvimento de todos. Seja em questões específicas como habitação, seja na questão da pobreza; temos de criar consensos e temos de ser capazes de trabalhar soluções que vão às causas da pobreza e que não se limitem a trabalhar os sintomas.

 

Eu pergunto-lhe se essa necessidade de consensos passa também por identificar e criar medidas estruturais e estruturantes que possam ajudar a superar a tendência que temos visto de promover políticas avulsas no combate à pobreza?

Sim, exatamente. A necessidade de uma estratégia vem daí. Vem da necessidade de pensarmos

aquilo que pretendemos no combate à pobreza a médio e a longo prazo e pensarmos que medidas podem ajudar a atingir isso.

Essa é a importância de termos uma estratégia, mesmo que depois tenha de ser atualizada. Porque uma estratégia é uma estratégia, um plano é um plano, não é? Tem de mudar, consoante evolui a sociedade, consoante evoluem os contextos.

Mas insisto: termos esta perspetiva do que queremos enquanto sociedade é importante. E esta estratégia traz-nos metas claras e mais do que isso traz-nos o envolvimento de todos os ministérios.

Por exemplo é uma das questões que é patente no plano de ação. Temos ações definidas por todos os ministérios. É claro que alguns com envolvimento muito maior do que outros, mas estão ali.

Isso é também uma mudança de mentalidade que temos de começar a fazer no combate à pobreza. Temos também dentro desse plano de ação, por exemplo, a necessidade de ouvir as pessoas em situações de pobreza.  Isso também é uma mudança de mentalidade no combate à pobreza.

 

Sejam sujeitos também das ações, não é?  

Exatamente. Não serem apenas os beneficiários, os alvos das ações, mas terem uma voz

e poderem ajudar a avaliar o impacto que essas medidas estão a ter na vida deles e ajudar a pensar que medidas são necessárias.

 

E pode ter também um impacto positivo na ajuda da resolução do problema, as pessoas que podem ajudar estarem próximas? Entre as medidas da estratégia está a possibilidade de haver um gestor local para o problema de cada pessoa…. 

Sim. Há esta preocupação de trazer para o terreno não só nessa medida, mas numa outra que é promover estratégias locais a nível municipal de combate à pobreza.

Isso é importante. Territorializar porque os territórios são diferentes, têm necessidades diferentes. E nesse caso desses gestores, tanto quanto foi dito até agora, tanto quanto se sabe até ao momento, tem esta perspetiva de intervenção integrada; de olhar para a família e ver todas as necessidades

em vez dessas famílias terem de percorrer os labirintos da proteção social

que são difíceis de percorrer, que são muito burocráticos, e nem sempre se conhece todas as medidas. Ter alguém que ajude e facilite neste processo é importante. Obviamente que como em tudo, o diabo está nos detalhes. Temos de ver como é que vai ser implementado. Primeiro com que recursos. Porque nós já tivemos essa experiência no rendimento social de inserção, e no rendimento mínimo garantido, sobretudo. Essa ideia de ter alguém que acompanhe a família e que ajuda a articular com um conjunto de outros serviços, de outros atores do território, mas tínhamos rácios de família por técnico muito elevados que impossibilita qualquer tipo de acompanhamento.

Se acontecer o mesmo, a medida vai fracassar, por isso, esta é uma medida importante.

Depois também é importante garantir que as pessoas possam avaliar, possam perceber e fazer uma avaliação. É um projeto piloto, e é importante que essa avaliação tenha a voz das pessoas.

 

Será feita uma monitorização anual? 

Espero que sim. Pelo menos é um projeto piloto, e o objetivo dos projetos pilotos é

esse. Depois há um outro risco que acho que também é importante falar com essa territorialização que tem muitos aspetos positivos. Também é importante blindar, de alguma forma, as medidas para evitar que ideologias que possam existir nos territórios influenciem o acesso ou não acesso

ou o melhor ou o pior acesso. Sabemos que está a crescer o populismo, sabemos que há uma perspetiva, uma leitura da pobreza muito específica em alguns desses partidos e por isso é importante garantir que, independentemente de quem está à frente desses municípios, todas as pessoas tenham acesso de qualidade a esse tipo de proteção.

 

Foto: Paulo Teixeira/RR

Entre as medidas anunciadas, as que se direcionam para o apoio à infância são aquelas que podem ser mais eficazes na tentativa de quebrar o ciclo da pobreza?

Há um enfoque importante em quebrar o ciclo da pobreza e um enfoque importante no combate à pobreza infantil. Há, por exemplo, o aumento do abono, há o aumento da garantia para a infância. Não é dito que aumento é esse… Também uma perspetiva de intervenção mais integrada. Veremos como é implementado. Como disse, a forma como é implementada influencia muito os resultados que vamos ter.

 

Eu gostaria de fazer aqui uma pergunta que tem a ver com outra população vulnerável, que é a população que se encontra em situação de sem-abrigo. Anunciam-se datas para a solução definitiva do problema, mas a realidade mostra que essa população tem aumentado. A pergunta que se impõe fazer é onde é que estamos a falhar?

Estamos a falhar a priori. Estamos a falhar na capacidade de proteger as pessoas, no caso da habitação – a falta de habitação e o preço da habitação estão a ter aqui um impacto importante nas situações e nas novas situações de sem-abrigo. Vemos cada vez mais pessoas que estão inseridas no mercado de trabalho e que, mesmo assim, acabam por viver em carros ou em situações muito precárias e por isso esta dimensão não pode ser separada. Depois a nível da proteção social, nós temos uma proteção social que tem um impacto muito pequeno no combate à pobreza. Por exemplo, se pensarmos nas prestações de desemprego, de saúde, exclusão social, família…

 

Elas perpetuam esse ciclo de pobreza?

Quando olhamos para a taxa de pobreza, elas diminuíram em 24% a taxa de pobreza, mas a nível da média europeia diminuíram em 36%. Portugal é dos países que menos impacto tem as prestações sociais na prevenção de situações de pobreza. Isso porquê? Porque a maior parte dessas prestações são valores muito baixos. O RSI está muito distante do limiar de pobreza. Todas essas medidas, a maior parte delas, estão distantes. Mesmo a nível, por exemplo, do desemprego. Nós temos mais de 50% dos desempregados que recebem subsídio de desemprego a receber valores inferiores a 500 euros, quando o limiar de pobreza é de 551 euros. Por isso, as medidas, a proteção social ainda está a falhar na capacidade de prevenir situações de precariedade e quando juntamos a isso o aumento do custo de vida e toda a crise da habitação, temos aqui um contexto explosivo.

 

Estamos perante um cenário de aumento das taxas de juros, aumentos de valores praticados, por exemplo no arrendamento por causa da pressão turística e outros motivos. É de prever um agravamento da situação?

Sim, a situação está a agravar-se. Os dados da pobreza, os dados oficiais, não mostram isso. Porque os dados da pobreza têm especificidades. Primeiro, olham para o passado, sempre, não conseguem olhar para o presente. Nós estamos em outubro e os dados que temos neste momento ainda reportam ao inquérito de 2022 e aos rendimentos de 2021. Ou seja, é um contexto totalmente distinto daquele que vivemos atualmente. E depois quando olhamos, por exemplo, para a pobreza monetária, este indicador trabalha especificamente o rendimento que recebemos, o rendimento que temos e comparamos com o valor do rendimento da população. Não é aqui visto o que se faz com esse dinheiro. Não tem aqui qualquer impacto do aumento do custo de vida. E isso é importante, p0rque depois a estratégia e todas as medidas, as políticas têm como metas esses dados oficiais. Por isso, corremos o risco de aproximarmos das metas de combate à pobreza, quando na realidade temos uma situação que é oposta daquela que os dados nos apresentam.

 

A Rede Europeia Anti-Pobreza lançou um vasto conjunto de iniciativas para sensibilizar a sociedade e os políticos para a real dimensão da realidade da pobreza. Pergunto, há mesmo vontade política em enfrentar o problema?

Para ter vontade política é preciso compreender a pobreza não como uma despesa, mas como um investimento. E eu não sei se esta mudança já ocorreu. Se pensarmos, por exemplo, na pandemia, houve um conjunto de medidas que foram feitas para tentar lidar com pessoas que perderam de imediato todo o seu rendimento, mas essas medidas não tiveram qualquer impacto no limiar de pobreza, no número de pessoas em situação de pobreza, porque o valor era de facto muito baixo. Nós ainda não temos essa capacidade de compreender que uma pessoa que nasce na pobreza e que vive na pobreza tem piores situações de saúde, que vai recorrer mais vezes às urgências, que não vai ter uma alimentação saudável, isso vai ter impacto depois na forma como faltam ao emprego, na forma como depois têm de estar em situação de desemprego ou cuidar de crianças que têm problemas e incapacidades. Nada disso é visto como um impacto da pobreza e nada disso é analisado como um investimento. Se conseguirmos olhar de uma outra forma para a pobreza e compreender quais são as causas, aí para além do empenho, se calhar teremos melhores resultados.

 

Essas soluções estão no relatório que recentemente apresentaram, que a rede europeia apresentou?

Nós apresentamos todos os anos um relatório que faz esta leitura da pobreza, muito com base nos dados oficiais. E o relatório permite-nos ver como está a evoluir, porque de facto ao longo dos anos mantemos mais ou menos os mesmos grupos, sendo os grupos vulneráveis. Temos alguns grupos que pouco diminuíram o seu risco de pobreza. Se pensarmos, por exemplo, nos desempregados, desde 2015 até agora, a taxa de pobreza, a exclusão social deles nunca baixou dos 60%. 60% dos desempregados estão em situação de pobreza e exclusão social.

 

E quantos são atualmente os trabalhadores que estão também no limiar da pobreza ou em pobreza?

Esta é outra questão, é que os desempregados podem ser aqueles que têm maior risco, mas a maior parte das pessoas em situação de pobreza são trabalhadores.

 

A percentagem é de 10%?

A percentagem é de 10%, se pensarmos na pobreza monetária, que é uma dimensão específica, é 12% se alargarmos o conceito e pensarmos em pobreza ou exclusão social. E se pensarmos na população que está em situação de pobreza e pensarmos nos adultos, que obviamente podem estar inseridos no mercado de trabalho, vemos que quase metade desses adultos estão inseridos no mercado de trabalho e trabalham o tempo inteiro, não se trata de uma questão de trabalhar em part-time e por isso não ter rendimentos específicos. Trabalham a tempo inteiro. O que acontece é que esse rendimento é baixo e não permite ter um filho ou ter um cônjuge que, por algum motivo, não possa estar a trabalhar.

 

Um em cada cinco portugueses ou residentes em Portugal correm risco de pobreza atualmente?

Sim, a taxa de pobreza é 20%. A verdade é que nunca descemos dos 2 milhões de pessoas em situação de pobreza ou exclusão social. Ao longo de todos esses anos de combate à pobreza, temos tido muita dificuldade em baixar significativamente este número.

 

Estávamos há pouco a referir que todos os dados que aqui apresentamos são dados do passado. E estes dados sobre os quais estávamos a falar e a trabalhar, não têm em consideração ainda plenamente o impacto da guerra na Ucrânia, o impacto da inflação e nós ainda estamos por determinar quais serão as consequências do conflito que estalou agora entre Israel e a Palestina. Devemos preparar-nos por um cenário ainda pior do que aquele que estamos a viver?

O cenário não é positivo, de facto. Para não terminarmos com um tom negativo, sabemos todos nós que o cenário não é positivo, mas eu acho que o mais importante e a mensagem que deixava aqui é a necessidade de pensarmos todos que somos responsáveis por este combate à pobreza. Este envolvimento de todos, da comunicação social, dos empresários, dos professores, dos médicos, de toda a sociedade no combate à pobreza é aquilo que pode de facto criar mudança. E para isso é importante maior conhecimento sobre o que é a pobreza, porque ainda há muitos mitos, ainda há muitos preconceitos, ainda há muita tendência de culpabilizar as pessoas pela situação que vivem sem compreender que obstáculos essas pessoas têm nos seus processos de vida, sem compreender quais são as causas, como é que é difícil para algumas pessoas entrarem no mercado de trabalho às vezes simplesmente porque têm 55 anos e estão desempregados. Coisas que a pessoa não pode alterar, a sua idade. Por isso, há várias causas que são estruturais e temos de olhar todos, como responsáveis pelo combate à pobreza, para conseguirmos aqui alguma mudança.

 

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Agência ECCLESIA

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