Não há Igreja sem escuta da Palavra

Homilia de D. José Policarpo na Dedicação da Sé Patriarcal 1. A dedicação de um templo significa a transformação de uma obra feita pela mão dos homens em templo, isto é, lugar inserido na acção salvífica de Deus, onde os crentes podem encontrar o Senhor, escutar a Sua Palavra, apresentar-Lhe as suas súplicas, adorá-l’O em espírito e em verdade, reconhecerem-se como assembleia, Povo de Deus reunido. O lugar do Templo na dinâmica da salvação baseia-se na necessidade de contacto dos crentes com Deus e na confiança de que Deus está presente no meio do Seu Povo. É por isso que Cristo, Filho de Deus feito Homem, é a expressão plena do templo, porque n’Ele Deus está presente no meio do Seu Povo. É por isso que Jesus, no Templo de Jerusalém, que Ele respeita como Casa do Deus Vivo, falava do Templo do Seu Corpo. E porque Ele é a pedra viva sobre a qual assenta a Igreja, esta é um “templo espiritual” que, porque vive da plenitude de Cristo, é para o mundo o templo do Deus vivo. A “pedra angular” sobre a qual está edificada a Igreja, está sacramentalmente presente nos doze Apóstolos, do Cordeiro, verdadeiras colunas da Igreja. É por isso que a Catedral, templo onde o Bispo, sucessor dos Apóstolos preside, é a base sólida da edificação da Igreja, é o verdadeiro templo da Igreja diocesana, dá sentido a todos os outros templos da Diocese. Aí o Povo de Deus convive intimamente com Cristo e, por Ele, com a Santíssima Trindade, onde escuta com amor a Sua Palavra, se constrói uma intimidade, se aprende a caridade, que desabrocha em louvor. Quando a Igreja diocesana se afasta ou esquece o sentido sacramental da Igreja Catedral, corre o risco de se afastar de Jesus Cristo, escutado e amado ao ritmo sacramental da Igreja, que lhe é impresso pelo mistério da Encarnação. 2. É significativo que a designação deste templo seja Catedral, onde o Bispo tem a sua cátedra, onde se afirma como Mestre da fé, proclama a Palavra de Deus e transmite a fé da Igreja. A proclamação da Palavra está, assim, intimamente ligada ao sentido da Catedral. Este facto abre-nos para vários aspectos do lugar da Palavra no crescimento da Igreja. Antes de mais, a Palavra é Escritura e Magistério e ambos são inseparáveis. A Palavra da Escritura é viva, faz o seu caminho, iluminou acontecimentos, tornou-se luz a indicar os caminhos da fidelidade, é fonte de sentido e de exigência moral, é profética em cada momento da história. Esta aventura da Palavra constitui a Tradição, onde se harmonizam a fidelidade à mensagem original e a novidade de sentido que adquire pela sua inserção na vida concreta dos homens. Quem garante esta harmonia é o Magistério. Este mostra, de maneira viva e actual, que a Palavra da Escritura é para ser proclamada e escutada ao ritmo da vida da Igreja, das exigências do crescimento da fé e da missão e da iluminação das realidades temporais. O Magistério não é opinião, é serviço da Palavra, assistido pelo Espírito Santo, a lembrar-nos que só a Igreja, como Povo do Senhor, é o verdadeiro sujeito da Palavra revelada e só a Igreja pode interpretar o seu sentido. Num tempo marcado pelo individualismo na definição da verdade, esta função do Magistério é decisiva para que não se caia na interpretação individual da Escritura e se garanta a autenticidade da mensagem revelada. Isto convida-nos a uma qualidade pastoral na proclamação da Palavra em assembleia litúrgica. Na celebração dominical, o povo crente é alimentado pela Palavra e pela Eucaristia. A proclamação da palavra em assembleia litúrgica, supõe clareza e unção nessa proclamação, autenticidade eclesial na sua interpretação e aplicação à vida. O povo crente reúne-se, antes de mais, para escutar o Senhor, para se deixar surpreender pela Sua Palavra e não para o fazer dizer o que cada um gosta de ouvir. A Palavra de Deus é exigente; Paulo compara-a a uma espada de dois gumes que penetra até ao mais íntimo do nosso ser. 3. A escuta da Palavra de Deus define a natureza e o dinamismo da nossa fé. Na Sua Palavra, Deus abre-nos o Seu coração, revela o Seu amor por nós e o Seu desígnio de salvação é um convite à intimidade e à comunhão de amor. Acreditar é aceitar esse desafio de intimidade, na confiança, é abandonar-se a uma aventura de amor. Na fé, o amor tem a primazia sobre a razão; escutar a Palavra é, da nossa parte, uma resposta de amor. Os Salmos estão repassados desta visão da fé como aceitação de uma proposta de amor e de intimidade com Deus: “A Vossa Palavra é santíssima, por isso a ama o vosso servo” (Sl. 118). Só a fé que se enraíza na escuta amorosa da Palavra de Deus dá acesso à união mística com Deus. Sem isso, a fé corre o risco de diluir-se numa religiosidade natural, que não traça novos rumos à vida e abre as portas para uma outra felicidade. A escuta da Palavra de Deus é, por isso, o ponto de partida do crescimento na intimidade com Deus, na oração e no louvor. A oração é a expressão, por parte do crente, do desejo de aprofundar a intimidade amorosa com Deus, que nos revela o Seu amor. Só nesse contexto podemos escutar a Palavra, na sua actualidade de expressão do amor de Deus e iluminação da nossa vida, nas circunstâncias concretas em que a vivemos. E a oração é experiência pessoal e comunitária. O Povo de Deus, comunidade dos crentes, é o sujeito da oração e do louvor. Na oração da Igreja, cada crente aprende a rezar e percorrer o seu caminho pessoal de fidelidade ao amor de Deus. É por isso que a Liturgia foi sempre o contexto principal da escuta da Palavra de Deus. É por isso que, na nossa Igreja de Lisboa, a qualidade da proclamação da Palavra, do seu aprofundamento e aplicação à vida na homilia, e a densidade religiosa de toda a celebração, constituem desafios pastorais contínuos. 4. É significativo que Deus se manifeste ao Seu povo através da Palavra. Podia fazê-lo, apenas, por sinais ou suscitando sentimentos no íntimo de cada um. A Palavra tem conteúdos, é portadora de uma mensagem que o homem pode perceber através da sua inteligência e do seu coração. O facto da Palavra de Deus ser o ponto de partida da nossa fé, define a racionalidade da fé. A nossa razão experimenta que a verdade pode ser comunicada ao homem, sem deixar de ser profundamente humana, mesmo na sua racionalidade. Compete às nossas capacidades de entendimento acolher essa verdade, aprofundá-la e inseri-la na estrutura humana de compreensão. Aí se situa a importância que têm para a fé o estudo e o aprofundamento da Palavra de Deus e das verdades reveladas. Na nossa Diocese, tem-se feito um grande esforço de proporcionar aos cristãos este aprofundamento da Palavra e da fé. É importante que todos esses meios, que são em si mesmos culturais e de busca de uma racionalidade adulta da fé, não deixem de ser marcados pelo profundo desejo de escutar o Senhor. Em nosso Senhor Jesus Cristo, Verbo eterno de Deus feito Homem, percebemos que toda a Palavra de Deus é expressão dessa Palavra eterna e definitiva de Deus, a única que Ele, desde toda a eternidade pronuncia para nos dizer o infinito amor que nos tem. Toda a proclamação da Palavra é anúncio de Jesus Cristo. Escutá-la é ouvi-lo a Ele e entrar, com Ele e por Ele, no mistério do amor de Deus. 5. Aceitemos o desafio do Papa Bento XVI, ao sujeitar à reflexão do próximo Sínodo dos Bispos, o lugar da Palavra de Deus na Igreja. A Palavra introduz-nos na intimidade do mistério de Deus, une-nos, de forma viva e continuada, a Jesus Cristo, ensina-nos a amar a Igreja, a casa onde aprofundamos a verdade e crescemos na caridade, ilumina a nossa inteligência com os critérios de Deus, tornando-se cultura que inspira todo o nosso existir. Sé Patriarcal, 25 de Outubro de 2007 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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