Homília na Missa Crismal da Diocese das Forças Armadas e de Segurança. 1. Antecipamos para este dia a Celebração de Quinta-Feira Santa por um motivo maior de comunhão: os padres capelães militares, desta forma, poderão amanhã tomar parte nas suas dioceses de origem, do norte ao sul de Portugal, neste grande Mistério. De acordo com o Missal Romano, a Eucaristia desta festividade – chamada também Missa Crismal – é celebrada pelo bispo na Igreja Catedral, em cujo âmbito litúrgico se consagra o Santo Crisma para as unções do Baptismo e da Confirmação e se benzem os óleos dos catecúmenos e dos enfermos. É este um rito próprio do bispo, como sucessor dos Apóstolos e primeiro servidor da Igreja local, em volta de quem se reúnem os sacerdotes dos diversos lugares da Diocese, numa prova de unidade eclesial. Aos sacerdotes, de forma muito marcante, aos diáconos e leigos representativos da área de Lisboa, dos Conselhos Pastorais das unidades das Forças Armadas e de Segurança e à comunidade desta Igreja da Memória, as minhas saudações fraternas e a minha expressiva gratidão por terem querido vir até nós. Se os padres capelães vão reafirmar, dentro de instantes, o seu desejo de fidelidade à Igreja de Jesus Cristo, através do seu bispo, somos todos nós baptizados, com eles presbíteros, a assegurarmos ao mundo que é o Espírito de Deus que nos dirige e desvenda caminhos. A cada um é endereçada a beleza desta Palavra escutada: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu. Enviou-me a anunciar a Boa Nova aos pobres, a proclamar a libertação aos cativos e a vista aos cegos, a mandar em liberdade os oprimidos.” (Lc. 4, 16-21). 2. Ungir alguém no sentido bíblico é colocá-lo ao serviço de uma missão transcendente, constituindo-o depositário de um encargo, responsável por um valor, distribuidor de um bem para a Humanidade. Quem não cumpriu a missão, defrauda quem era e é o destinatário. Não cumprir uma missão equivale a desertar. Cristo, ungido do Pai, o enviado do Senhor, é o príncipe dos pobres, o convivente dos angustiados, o acompanhante dos sem título, o próximo dos afastados, o silêncio diante do mundanismo, a voz da cidadania do mundo, o irmão universal, desagregador das lutas de família e reconciliador na paz, em torno da única Mesa, donde nasce o Pão que gera a vida sem fim. 3. Fomos, nós sacerdotes, escolhidos para este estilo de existência. Fomos e somos chamados para esta cultura nova de realidades, de quem depende o equilíbrio pessoal e comunitário. Fomos designados para anunciar, com humanidade e o à vontade da maior convicção, que os critérios são outros, que as tabelas são diferentes, que os objectivos se encontram noutros lugares, que os fins não justificam quaisquer meios e que, independentemente de concepções religiosas, é necessário ter o bom gosto de seguir a razão e a voz da sensibilidade, para não converter o mundo num lugar de horror. A irracionalidade e a insensibilidade são expressões de uma pseudo-cultura, ao perder esta o gosto pelo pensar e ao por de parte as razões escondidas do que significa “ter coração”. Pensar faz mal ironizava, no seu tempo, Fernando Pessoa… “Ter coração” é manter uma solidariedade de tal forma ontológica com os acontecimentos e as pessoas, escapando, habitualmente, a quem se habituou a fitar a vida com objectivos de mero lucro… As utopias parecem já não ter lugar. A nossa missão tem o rosto da exigência da interioridade, da força da reflexão, da capacidade de servir os outros e a natureza. Virados para o exterior, sentimos que os apelos da História nos convocam para uma formação de cada instante em ordem a aprofundar conhecimentos, a ampliar horizontes, a inventar novas modalidades de reencontro, a cultivar uma generosa modéstia intelectual, a descobrir o mistério de Deus no invisível da Eucaristia e no escuro de terríveis situações humanas. Choca-nos, neste tempo, a mediocridade de maneiras de viver, o rosto enfastiado de funcionários de carreira, o desprestígio de quem nem sequer está interessado em ler um texto, que o texto do mundo à volta deixou há muito de concitar o mínimo interesse. Empurrado pelas circunstâncias, há um certo perfil de ser humano que se define por ter uns anos a mais e umas mais altas funções que, uns tempos atrás, não tinha. Quanto mais lhe é pedido, menos resposta há à altura de novas solicitações. Mas o mais perturbador é a situação de quem não sobe na vida, após uns anos a mais; de quem não aufere o justo salário, após anos a fio no mesmo sector; de quem se sente tolerado, sem lhe ser urgida a mais vulgar das cooperações; de quem, com uns anos a mais, começa a desconfiar da sua escolha profissional, do significado da sua existência, da ausência de motivos e alegrias de viver, da solidão perante o futuro. A ausência da tão propalada auto-estima nasce do repetitivo, da menos respeito pelas pessoas, do desinteresse em formações especiais, do descrédito diante de promessas e pseudo-referências, da injustiça, mãe de todas as calamidades. Ao lado da desenvoltura do progresso e da inovação, parece tudo perder-se pela incapacidade e corrupção, pelos atropelos e desarmonias sociais, pelos aproveitamentos e o “faz de conta”… A ausência da cultura, os aventureirismos tentadores, a eficácia do tédio, as irresponsabilidades diante da palavra dada, o aproveitamento no meio das confusões, e o grande medo perante um novo Apocalipse, definem um estatuto de comportamento. Voltemos ao acto da consagração da nossa missão sacerdotal: “anunciar a Boa Nova aos pobres, proclamar a libertação aos cativos e a vista ao cegos, a mandar em liberdade os oprimidos”. É um drama para o Ocidente encontrar as razões do terrorismo. Sem ressentimentos nem complexos, é preciso ser honesto diante da consciência civilizacional. Não tenhamos medo dos “exames de consciência”… Esta questão está toldada de equívocos. Mais. A verdade foi ofendida nos inícios deste processo de legítima defesa, com dedo estendido para o terrorista errado. Quando o militar brilhante que é Colin Powell se vê obrigado a confessar as suas dúvidas perante afirmações e a declarar que foi enganado (“eu não sou a comunidade de espionagem”, acrescentou!), não poderemos deixar de afirmar que, enquanto a verdade não for reposta, uma das expressões do clima terrorista, bem anterior ao 11 de Setembro de 2001, vai endurecer a estratégia da raiva e da vingança. Não dizemos nós, em discursos oficiais, que o mundo está doente por carências de valores? 4. Parto hoje para Timor-Leste em ordem a viver a Páscoa com os militares portugueses, onde terei presente todos os membros das Forças Armadas e de Segurança, de forma muito especial, os militares da Guarda Nacional Republicana que se encontram no Iraque. “Anunciar a Boa Nova aos pobres, proclamar a libertação aos cativos, mandar em liberdade aos oprimidos” é a missão sacerdotal da Igreja, nascida na primeira Eucaristia, na primeira Quinta-Feira Santa da História! Igreja da Memória, 7 de Abril de 2004 D. Januário Torgal Mendes Ferreira, Bispo das Forças Armadas e de Segurança