«Na Igreja, primeiro é a vida, depois a norma» – mons. Fernando Ocáriz

De 4 a 9 de outubro o prelado do Opus Dei esteve em Portugal, numa visita que passou por Fátima e Lisboa. Em entrevista, aborda a realidade que encontrou e o momento de mudança que se vive, em resposta aos pedidos do Papa Francisco

Entrevista conduzida por Octávio Carmo

 

Foto: Opus Dei

Teve oportunidade de dizer que, em Portugal, se sente “em casa” e não de visita. Como vê a realidade do Opus Dei no nosso país, o seu contributo para a Igreja e a sociedade portuguesa?

Sinto-me “em casa” porque já estive muitas vezes em Portugal – também a rezar em Fátima – e porque no Opus Dei há muitas portuguesas e portugueses. O Opus Dei está em Portugal há mais de 75 anos, e os seus membros procuram ser, na Igreja e na sociedade, fermento na massa. Em que sentido? Não no sentido de se sentirem especiais, mas no sentido de viverem a mesma vida que todos os outros, em união afetiva e efetiva com Jesus Cristo, como filhos de Deus pelo batismo.

É esta a sua vocação eclesial. É claro que é importante que haja leigos que se dediquem a atividades e serviços próprios da pastoral eclesial. Mas para a grande maioria dos leigos isso não é possível nem desejável. Deus espera dos leigos um diálogo permanente de amor em casa, na vida de casal, no cuidado dos filhos, nas preocupações económicas, no local de trabalho, no empenho em causas sociais e culturais, no desporto, nos hobbies, no mundo da arte, etc. Não se trata de uma relação com Deus de tipo intimista, sem consequências externas, mas de uma relação que leva a identificar-se cada vez mais com Jesus Cristo e, como Ele, a dar-se à própria família, aos amigos e vizinhos, aos colegas de trabalho.

 

Em agosto, recebemos a edição internacional da JMJ. Acredita que foi uma oportunidade para dar a conhecer carismas como o do Opus Dei e gerar uma renovada mobilização evangelizadora, entre as novas gerações?

Felicito os portugueses pela forma como organizaram tão bem a JMJ. A satisfação do Papa e de muitas pessoas que partilharam a sua experiência desses dias é prova disso.

É certo que devemos valorizar o novo impulso que uma JMJ traz a muitos caminhos da Igreja, incluindo o Opus Dei. Mas, mais do que isso, a JMJ foi, acima de tudo, um momento em que Jesus Cristo se tornou presente de uma forma especial e desvelou o seu rosto simultaneamente amável e exigente. Foi comovente ver Jesus Eucarístico ser adorado em silêncio por tantos jovens no Parque Tejo. Foi também impressionante ver as filas pacientes de cerca de dez mil jovens que queriam receber o sacramento da penitência no Parque do Perdão.

 

O trabalho com os jovens, especialmente os universitários, continua a ser uma prioridade?

Antes de dizer que sim, deixem-me recordar que a prioridade é chegar a todos, sem excluir ninguém. Cada pessoa é preciosa e única aos olhos de Deus. Devemos ter pressa, uma pressa serena, para não deixar ninguém sem a possibilidade de conhecer Jesus Cristo, com a ajuda da nossa oração, do nosso trato, da nossa amizade sincera.

Por seu lado, os jovens, para além de serem o presente da Igreja, são também, de modo especial, o seu futuro. Em todos os mares da história, Jesus continua a passar pela margem à procura de jovens pescadores de homens: para caminhar com Ele e para os enviar ao mundo inteiro.

A maioria dos jovens sentirá a atração de Deus na vocação matrimonial, mas alguns experimentarão que Deus os atrai para uma relação exclusiva no celibato, aberta ao serviço de todos. É frequente associarmos o celibato à vida sacerdotal e religiosa, não sem razão. No entanto, vale a pena recordar que, desde o tempo dos apóstolos, Deus também chama ao celibato na vida laical, com base apenas na consagração batismal.

Os universitários, além disso, têm uma chamada especial para encontrar formas de harmonizar a fé com a cultura e a ciência, de modo que a fé possa informar eficazmente a vida social.

 

A prelatura vive um momento de mudança, sabemos que iniciou os trabalhos com o Dicastério para o Clero, a fim de preparar a proposta de modificação de estatutos ao Papa. Como se estão a viver estes momentos?

Procuramos seguir as disposições do Santo Padre com sincera obediência filial, e com o desejo – como o próprio Papa Francisco recordou – de que sirvam para reforçar os aspetos essenciais do Opus Dei, que estão contidos no seu carisma. Foi o que pedi expressamente em várias mensagens dirigidas às pessoas do Opus Dei: que estivessem muito unidos, precisamente nesta obediência sincera, seguindo o exemplo de São Josemaria e dos seus dois primeiros sucessores. É o Espírito Santo que guia a Igreja. Por isso, estes são também tempos para viver com paz e serenidade.

 

Alguns membros da prelatura manifestaram questões e inquietações sobre este tema, nos media e redes sociais, nem sempre no tom mais pacífico, por assim dizer. Entende estas manifestações, especialmente as que falam em ataques? Teme uma instrumentalização do Opus Dei para alimentar oposições ao pontificado?

É compreensível que surjam perguntas, dúvidas e preocupações, também por causa de certas interpretações que foram publicadas, de cariz mundano, como se se tratasse de “ganhar ou perder poder”, coisa que na Igreja não faz sentido. Na minha primeira carta como prelado, escrevi: “fazer crescer o apreço mútuo entre os fiéis da Igreja, e entre os mais variados agrupamentos que possam existir, faz parte da nossa missão na grande família dos filhos e filhas de Deus”. E citei uma frase do fundador: “o principal apostolado que nós, os cristãos, temos de realizar no mundo, o melhor testemunho de fé é contribuir para que na Igreja se respire o clima de autêntica caridade”.

A este propósito, recordei uma ou outra vez o exemplo que vi no então cardeal Ratzinger, cujo amor pela Igreja e pelo Papa, forte e fundado na fé, ia para além da emoção. Num momento delicado para a unidade da Igreja, então posta em causa por alguns, ouvi-o dizer do fundo do coração: “Como é possível que não se apercebam de que sem o Papa não são nada!”.

 

A relação dos leigos com a Obra poderá mudar? Este “chamamento vocacional específico” terá de encontrar um estatuto teológico-canónico própio, na Igreja?

Na Igreja, primeiro é a vida, depois a norma: isto é, usando as palavras do Papa Francisco, a realidade é superior à ideia.

No coração de São Josemaria, Deus depositou a semente de uma mensagem. Que mensagem? A da redescoberta do valor vocacional da vida corrente dos fiéis: Deus confiou aos homens a tarefa divina de construir o mundo (a família, o bairro, o trabalho, o progresso, as artes, a diversão) como filhos de Deus em Jesus Cristo.

Dentro da inspiração fundacional, esta mensagem devia ser proclamada e vivida com um espírito concreto, com a ajuda de uma instituição, o Opus Dei. E esta instituição foi, desde o início e com crescente desenvolvimento ao longo do tempo, uma família no Povo de Deus, formada por mulheres e homens, leigos e sacerdotes, com unidade de vocação, de formação e de espírito, com uma ação complementar e não concorrencial com a das dioceses e paróquias, permanecendo os seus membros leigos plenamente fiéis das suas dioceses e paróquias. Por isso, esta realidade é anterior ao enquadramento canónico, e é a razão de ser do Opus Dei.

 

Este momento pode ajudar a recuperar o carisma originário, proposto por San Josemaría Escrivá?

Não se trata de o recuperar, porque não é algo que se tenha perdido ou desvirtuado, mas de aprofundar e de continuar no esforço por viver com fidelidade. Neste sentido, esperamos responder ao apelo do Santo Padre: cuidar do carisma do Opus Dei, para o sabermos levar para o futuro com a mesma frescura com que São Josemaria no-lo transmitiu. Ou seja, que nos empenhemos mais em “difundir o chamamento à santidade no mundo, através da santificação do trabalho e das ocupações familiares e sociais” (Motu proprio Ad charisma tuendum).

 

A minha última pergunta é sobre o Sínodo dos Bispos. Que contributo espera dos membros da Obra, neste processo?

A primeira contribuição é a oração pelo Sínodo, e, por oração, entendo também o cumprimento dos deveres quotidianos, realizados o mais perfeitamente possível dentro das limitações pessoais. Juntamente com isto, muitos membros do Opus Dei estiveram envolvidos nas várias etapas do processo sinodal, especialmente a nível diocesano e nacional. Além disso, procuramos sintonizar com o desejo profundo do Papa para o Sínodo, ou seja: mostrar que a responsabilidade de fazer avançar a Igreja não é exclusiva dos bispos, dos sacerdotes ou dos religiosos, mas de cada um e de cada uma dos baptizados, “caminhando juntos”. A missão de evangelização e a busca da santidade pessoal são da responsabilidade de todos, cada um com as suas possibilidades pessoais e limitadas.

 

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Agência ECCLESIA

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