6.ª edição do Festival Terras sem Sombra arranca em Santiago do Cacém
Famosa pelas suas condições acústicas, a igreja matriz de Santiago do Cacém recebe este Sábado,a 23 de Janeiro, o concerto de abertura da 6.ª edição do Festival Terras sem Sombra de Música Sacra do Baixo Alentejo, com Jordi Savall e Pedro Estevan. É o ponto de partida para uma temporada que se estende até 8 de Maio e tem como objectivo o aprofundamento das relações entre a música antiga e a expressão artística contemporânea, segundo lembra o título escolhido: “Limites Imensos – A Contemporaneidade na Música Antiga”.
Resultante da parceria do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja com a Arte das Musas, o Festival Terras sem Sombra é dirigido, desde a primeira hora, por José António Falcão e Filipe Faria. Visando a formação de novos públicos e a abertura de igrejas de notável valor, algo fundamental numa região em que, até há pouco, estas lacunas eram gritantes, os seus espectáculos são, todos eles, de acesso livre. Sem bilhetes ou reservas, porque a cultura deve ser um bem acessível a todos, mesmo longe dos grandes circuitos nacionais. Conta-se para isso com a colaboração da Direcção-Geral das Artes do Ministério da Cultura, da Delta e das câmaras municipais dos concelhos visitados. Aos pontos já habituais (Almodôvar, Alvito, Beja, Castro Verde e Santiago do Cacém) associou-se este ano, pela primeira vez, Grândola.
Atingida a maturidade, o Festival permanece fiel à sua vocação – dar a conhecer os grupos portugueses mais qualificados, com um especial atenção para os jovens intérpretes –, mas não descura a internacionalização. O concerto que abre a edição de 2010 representa um passo de gigante nesta caminhada. Conseguir trazer Jordi Savall a Santiago do Cacém, quando se sabe que ele trabalha com uma agenda a longo prazo e é muito rigoroso na selecção dos eventos para os quais é convidado, exigiu persistência e diplomacia. O passo inicial ocorreu em 2002, na altura em que se estudava o lançamento do projecto Terras sem Sombra. Savall realizou um concerto na igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma, coincidindo com a exposição “As Formas do Espírito – Arte Sacra da Diocese de Beja”, apoiada pela Santa Sé e por Portugal. O músico ficou entusiasmado com o que viu e quis conhecer o Baixo Alentejo. Ficou assim lançada a base de uma ideia que, desenvolvida com todo o cuidado ao longo dos últimos anos, pôde finalmente concretizar-se.
A escolha da igreja matriz de Santiago do Cacém para o arranque da 6.ª edição do Festival resulta também de um trabalho constante. Fundado em inícios do século XIII, este monumento, sede de uma antiga colegiada da Ordem militar de Santiago, é um dos mais belos exemplos do Gótico monástico-militar. Apesar de pertencer ao Estado e possuir a classificação de monumento nacional, permaneceu durante muito tempo ao abandono. Uma comissão local de salvaguarda conseguiu, em colaboração com o Ministério das Obras Públicas e a Câmara Municipal, recuperá-lo e mantê-lo aberto. As condições acústicas e a aura espiritual fazem dele um sítio muito cobiçado para a interpretação de música antiga, ocupando posição de relevo no Festival Terras sem Sombra.
Savall, mestre de mestres
Jordi Savall ocupa um lugar próprio no universo da música. Há trinta anos que se dedica a revelar maravilhosos fenómenos musicais, abandonados na obscuridade e na indiferença, estudando-os e interpretando-os na viola da gamba ou como maestro. Trata-se de um repertório fundamental oferecido aos melómanos exigentes. Através dos três ensembles musicais fundados com Monserrat Figueras, Hespèrion, La Capella Real de Catalunya e Le Concert des Nations, soube criar um universo repleto de emoções e beleza, dádiva para todos os apaixonados pela música.
Nascido na Catalunha, Savall é uma das personalidades musicais mais polivalentes da sua geração. Concertista, pedagogo, investigador, tornou-se um dos protagonistas da actual revalorização da música histórica. A participação no filme de Alain Corneau, Todas as Manhãs do Mundo (César para a Melhor Banda Sonora), a intensa actividade de concertos (cerca de 140 por ano), a discografia (seis gravações por ano), sem esquecer a criação da sua própria etiqueta, Alia Vox, provam que a música antiga nada tem de elitista.
Colaborador habitual de Savall e Figueras, Pedro Estevan estudou no Conservatório Superior de Música de Madrid e em Aix-en-Provence, onde frequentou o Curso de Percussão Contemporânea e Africana com o senegalês Doudou Ndiaye Rose. Aprofundou também a técnica de “hand drums” com Glen Velez. Foi membro fundador da Orquestra das Nuvens e do Grupo de Percussão de Madrid. Músico eclético, dedica-se principalmente à música antiga e contemporânea. É professor de Percussão Histórica na Escola Superior de Música da Catalunha.
Savall e Estevan, peritos na recuperação de sonoridades esquecidas, assinalam o ponto de partida de um programa ambicioso. O seu recital, fruto de muitos anos de investigação musicológica, privilegia o diálogo Oriente-Ocidente, pondo em confronto “músicas antigas” e “músicas do mundo”. Das tradições sefarditas da Argélia e da Turquia às “danças do vento” e “das espadas” dos berberes e às melodias litúrgicas do Ocidente medieval (Itália, Castela, Leão), um percurso de vários séculos relembra a identidade do Grande Mediterrâneo, ponto de encontro do Judaísmo, do Cristianismo e do Islão em torno de uma herança comum. Algo que faz todo o sentido numa iniciativa destinada a unir a arte de dois senhores da música ao património religioso do Baixo Alentejo, também ele alvo de intenso esforço de resgate nos últimos anos.
Aliança das Civilizações
O interesse pela aliança das civilizações, aliás, manifesta-se em toda a arquitectura do Festival, que aposta forte no cruzamento de tendências artísticas diversas, sem preconceitos, mas assumindo, como em edições anteriores, grande preocupação com a coerência e a qualidade das propostas apresentadas. Existe uma aposta na valorização das grandes correntes da música sacra, associando-a à redescoberta das igrejas do Baixo Alentejo enquanto espaços de referência para a identidade do território. Esta opção põe em destaque uma realidade que não olha só para o passado e continua a ter papel importante na cultura dos nossos dias. O fio condutor da iniciativa, de resto, assenta no diálogo com os criadores do presente, agentes fundamentais para dar voz a um conjunto de vivências hoje muitas vezes esquecido (ou silenciado).
Isto desperta o interesse do público e da crítica. Contando invariavelmente com “casa cheia” – e algumas igrejas levam mais de 500 pessoas! –, o Terras sem Sombra perfila-se hoje como o ciclo musical mais importante do Alentejo. A sua área de influência, aliás, vai para além das fronteiras da região, atraindo espectadores de diferentes pontos do país e da vizinha Espanha. Para tal contribuem algumas marcas próprias do Festival, a começar pelo facto de que este se propõe traçar, numa linguagem sem elitismos, pensada para o grande público, uma “história da música”, subordinando cada edição a um capítulo do património musical. Outro traço distintivo da iniciativa prende-se com o seu carácter itinerante. Ao invés de estar centrada numa terra, a programação abrange diferentes concelhos da região, escolhendo igrejas com relevância artística e musical. Cada espectáculo é antecedido por visitas guiadas e por uma palestra sobre a história e a arte do monumento.