Espaço litúrgico da comunidade cristã dá a muitas peças de grandes compositores o seu total significado e recupera o fim para que foram criadas Falar de obras musicais para a Semana Santa pode parecer um contra-senso para quem pensa nestes dias como a “semana dolorosa”. A música, contudo, não se esgota dentro da Igreja como expressão de alegria e, como não há Páscoa sem Paixão, não há ressurreição sem morte. A música exprime louvor, acção de graças, exultação e júbilo, mas também súplica, lamento, tragédia ou arrependimento. O ano litúrgico, que percorre todos os mistérios da vida de Cristo, desafia a música a exprimir intensamente todos estes passos e sentimentos da vida cristã e é no espaço litúrgico da comunidade cristã que muitas das peças encontram o seu total significado e o fim para que foram criadas. A Semana Santa, de modo especial, está ligada a um mundo de sentimentos e de tradições muito particulares, que procuram apresentar o mistério da redenção. Os grandes autores da história não ficaram à margem dos momentos litúrgicos destes dias, como se pode ver nas histórias sacras de Giacomo Carisimi ou nas histórias da paixão de Heinrich Schütz (segundo São Mateus ou segundo São Marcos). De Portugal destacamos Frei Manuel Cardoso (1566-1650) e a “Aquam quam ego dabit”, uma colecção de motetes para várias festas litúrgicas que antecedem a Páscoa, culminando numa série de lições e responsórios da Semana Santa que se podem encontrar no Livro de vários motetes, publicado em Lisboa por Craesbeeck em 1649. Diogo Dias Melgaz (1638-1700), o último de uma série de grandes mestres da Sé de Évora apresenta-nos os seus motetes para a Quaresma e as “Turbas da Paixão”. Manuel Luís (n. Turquel, Alcobaça, 8 Jul.1926; m. Lisboa, 5 Jul. 1981) foi o grande impulsionador da música litúrgica em português, após a abertura da liturgia às línguas comuns, com o Concilio Vaticano II. Musicou, em 1966, textos para cantar na Semana Santa, como “Povo meu que te fiz eu” para a adoração da cruz, salmos para a Vigília Pascal. De lembrar ainda os responsórios da Semana Santa, de Manuel Faria, talvez o maior expoente da música sacra em Portugal no século XX. Itinerário musical O Domingo de Ramos, com a sua entrada triunfal em Jerusalém, poderia convidar a ouvir obras como a Missa em Ré Maior de Beethoven, ou a Missa em Ré menor de Cherubini. Obrigatório é o “Christus am Oelberge” (Cristo no Jardim das Oliveiras), op. 75 de Ludwig van Beethoven (1770-1827), o único oratório composto pelo génio alemão. Está escrito para 3 solistas (Soprano, Tenor e Baixo), coro e orquestra, baseando-se nos relatos evangélicos que antecedem a Paixão de Cristo. Para estes dias, muitas são as interpretações musicais da vida de Cristo, as Paixões, com base nos Evangelhos. Inesgotável é também o mundo do Gregoriano, com os seus cantos da Semana Santa e Páscoa. A Terça-feira Santa começa com as “Lamentações de Jeremias” (“O vos omnes”, Lam 1,12), elaboradas de forma notável entre os séculos XV-XVIII, quando numerosos compositores escreveram “Lamentações”, “a capella” (Thomas Tallis, Orlando di Lasso, Tomás Luís de Victoria, Marc-Antoine Charpentier, François Ciuperin, Igor Stravinsky), com particular brilho no caso de Palestrina e de W. Byrd. Na Quarta-feira Santa é possível ouvir o Ofício de Trevas de Marco Antonio Charpentier, um dos legítimos representantes do que foi a “revolução” estética na música religiosa francesa do século XVIII. As suas “Leçons de Ténèbres” (Lições das Trevas) são de uma grande sensibilidade, beleza e invenção melódica. Tríduo Pascal O início do Tríduo Pascal é altura de ouvir uma obra-prima da música mundial, a “Paixão segundo S. Mateus” de Johann Sebastian Bach. A beleza intimista dos seus imensos corais, a intensidade espiritual das árias, o dramatismo dos recitativos e o seu comovente coro final merecem uma atenção especial. Na Sexta-feira Santa, o dia começa com o “Ofício de Trevas”, que preparam a Paixão do Redentor. Esta celebra-se com as “sete palavras de Cristo” de Joseph Haydn ou de Heinrich Schutz. Depois da hora tércia, quando a terra estremece, a dor de Maria é acompanhada com o “Stabat Mater” (os mais famosos são os de Giovani Pergolesi, Giacomo Rossini, Joseph Haydn, Palestrina e Vivaldi). Os penitenciais fúnebres “Miserete mei Deus”, o “Dies Irae” de Jean Batista Lully, e o Salmo “De Profundis” de André Campra, M. A. Charpentier e Michael Richard Delalande têm lugar no espírito deste dia. O Sábado Santo, dia alitúrgico, pede um “requiem” pelo Senhor no sepulcro. O Requiem de Mozart, com a sua extraordinária “Lacrymosa” é uma opção, como o de Jean Gilles (1774), ou o sereno Requiem para vozes masculinas de Lorenzo Perosi. Antes da Vigília Pascal pode ouvir-se a “Sinfonia ao Santo Sepulcro”, de Vivaldi, ou a obra “et expecto resurrectionen mortuorum”, de Olivier Messiaen. Para fechar este ciclo, quando as trevas ficam para trás, caberá a Missa Solene de Beethoven, provavelmente a maior afirmação de fé que algum compositor escreveu alguma vez na história. Bento XVI, aliás, considera-a “um tocante testemunho de fé”, defendendo que a obra mostra que “se o homem está diante de Deus, só a palavra não basta”.