Nascido na tradição protestante e reconhecido entre cristãos como «profeta», Samuel Úria apresenta o último trabalho «2000 AD», sublinha «figura do outro» nos Evangelhos e recorda «Palavra viva e eficaz» que lhe moldou a vida
Lisboa, 22 jan 2025 (Ecclesia) – O cantor Samuel Úria olha para a música como um “veículo essencial” para criar uma “consciência alargada”, afirma-se “absolutamente sincero” nas suas composições que nascem do “profundo espanto e êxtase», explica serem uma “denúncia” e afirmação de esperança.
“É raro incorrer numa denúncia que não seja uma denúncia que eu faço a mim próprio. E quando eu faço a mim próprio, parto já na esperança de que a canção seja uma reflexão rumo à correção, rumo à melhoria. Eu já escrevi amargurado, já escrevi desiludido, já escrevi abatido, mas tem que haver sempre esse lado esperançoso a tomar conta, até porque a mensagem que mais me move, a mensagem com a qual eu convivo desde criança, é uma mensagem de esperança”, explica à Agência ECCLESIA.
Samuel Úria olha para si como um “pessimista esperançado” e entende que a fé ou a prática religiosa, tendo crescido na tradição batista, não lhe dá um privilégio mas maior responsabilidade para ser “proteção e consolo para outros”.
A religião não dá uma espécie de vantagem. A religião, a mim, não me dá a ideia de que vou estar protegido. Há uma responsabilidade no que eu puder fazer para proteger os outros, para ser consolo para os que ficaram desprotegidos. Porque a minha ideia de criação, é que o mundo é um encadeamento de coisas que não têm que correr bem. E o correr bem nem sempre contribui para a ação da minha atividade religiosa. Eu sei que as coisas não têm que correr bem, não irão correr bem, e eu não estou protegido de uma maneira especial sobre as condições que me rodeiam. Mas eu tenho esperança e a esperança tem que estar em mim para que contribua, para que seja um agente do que é bom”.
Samuel recorda ter crescido no meio de “muitos, muitos, muitos livros seculares” e no contacto próximo com “várias Bíblias, provenientes de diversas traduções, muito manuseados”, tendo o exercício da escrita, descoberta em contexto escolar, permitido mostrar o “imenso mundo interior” que tinha, “uma reflexão constante”, um “manancial de perguntas e respostas que se acumulavam” entre a dificuldade de concentração de um ser irrequieto.
Forjado em Tondela, numa minoria protestante, o músico afirma-se herdeiro dos valores, do reconhecimento e respeito que a terra prestava ao seu avô, Armelindo de Jesus, sapateiro de profissão, “pessoa exemplar na comunidade”, que, “com orgulho andava, ao domingo – quase como um uniforme – com a Bíblia debaixo do braço”.
Para mim o essencial dos Evangelhos, para além da figura de Cristo, é a noção do estrangeiro, do outro. Eu percebo que a figura do outro possa causar desconfiança, percebo que seja sedutor continuar a demonizar esse estrangeiro para precavermos as nossas ideias. Mas o estrangeiro, o outro, aquele que está distante de nós, aquele que é diferente de nós, aquele que é contrário a nós, é a mensagem do Evangelho. O outro somos nós – nós somos o estrangeiro, o indigno”.
Samuel Úria lamenta que a “cobardia” e as guerras culturais do tempo presente que mostram a “crise de identidade” e o medo.
“Perdemos muito mais tempo com questiúnculas que promovem uma guerra que é cobarde. Eu acho que é cobarde, porque ir ao encontro do outro é que é a verdadeira coragem”, sublinha.
O cantautor, que lançou recentemente o trabalho «2000 AD», explica que a música é para si um “veículo essencial para uma consciência alargada”: “A música é corajosa e, para mim, é uma espécie de redenção ou absolvição por eu não ser corajoso ou atento como devia”.
Na sua escrita, que brota de “um profundo êxtase e espanto”- onde alusões bíblicas são recorrentes e que lhe dão “constante feedback por parte de cristãos” – Samuel Úria procura “mais por questões estéticas do que morais ou identitárias”, não ser “absurdamente explícito”.
“Eu não estou a renegar nada, não estou com vergonha de assumir. Talvez vergonha de ser direto, mais por questões estéticas e não por questões morais ou identitárias. As parábolas são textos escritos há dois milénios e, sendo figurativos, podem ser transferidas para a realidade de hoje. São Palavra viva e eficaz. Parece-me mais interessante investigar o que está ali subentendido, a quem reconhece uma palavra ou outra. A mensagem não fica refém do emissor”, explica.
A conversa com Samuel Úria pode ser acompanhada esta noite no programa ECCLESIA, emitido na Antena 1, pouco depois da meia-noite, e disponível no podcast «Alarga a tua tenda».
LS