Na comemoração do centenário do nascimento de Monsenhor Joaquim Carreira, sacerdote de Leiria que, enquanto reitor do Colégio Português em Roma, durante a segunda guerra mundial, abrigou naquela instituição dezenas de judeus e outros perseguidos políticos, o bispo de Leiria-Fátima defendeu ser necessário manter vivo na nossa memória o exemplo heróico desta figura. Na sua intervenção exaltou várias qualidades deste notável servidor da Igreja e da sociedade: o seu carácter inovador e ousado, que manifestou tanto na criação de um laboratório de física e química no Seminário, que na época era o melhor das instituições de ensino da cidade de Leiria, como na acção pastoral, especialmente na Boa Vista, cuidado de dar às pessoas do movimento da Acção Católica uma sólida formação humana e espiritual. Foi o primeiro sacerdote com a carta de aviador, criou uma rádio local. Na sua vida transparecia uma fé intrépida e uma espiritualidade profunda. Na defesa dos perseguidos, foi um homem corajoso e de grande caridade cristã. No seu zelo pastoral e na prática do bem, é um sacerdote digno de ser imitado nos dias de hoje. Na mesma sessão solene, que teve lugar no Seminário de Leiria, dia 16 de Setembro, intervieram o padre João Carreira Mónico, sobrinho do homenageado, que apresentou a biografia que escreveu sob o título: “Monsenhor Joaquim Carreira. Apóstolo do bem, na guerra e na paz”. Trata-se de um livro volumoso com fotografias e documentos que nos permitem conhecer a grandeza da vida e da acção deste sacerdote natural da Caranguejeira. Salientou que estamos perante um “sacerdote de corpo inteiro, ao serviço de Deus, da Igreja e dos perseguidos. Foi apóstolo do bem, na guerra e na paz com acções, palavras e escritos”. A José Travassos Santos couve a tarefa de dar a conhecer a acção humanitária de Monsenhor Carreira no acolhimento aos judeus e a outros perseguidos, em Roma. Associou a acção solidária deste sacerdote à de outro português, Aristides Sousa Mendes, na mesma época. E leu alguns depoimentos daqueles que encontraram abrigo no Colégio Português. Com outros participantes na sessão, defendeu que urge divulgar, a nível nacional e mesmo internacional, a obra deste leiriense em favor das vítimas de perseguição. O padre Joaquim Carreira das Neves testemunhou o seu convívio com Monsenhor Carreira e a tentativa que fizera para ouvir do próprio o relato da obra que realizara. Ao que o sacerdote respondeu: “Essas coisas não se dizem, fazem-se”. Dados biográficos Natural da Caranguejeira, Monsenhor Joaquim Carreira nasceu em 1908 e faleceu no ano de 1981. Foi ordenado sacerdote em Roma, onde se formou em filosofia, direito canónico e teologia. Desempenhou o ministério sacerdotal como professor do Seminário de Leiria, capelão na Boa Vista, reitor do Colégio Português em Roma e Conselheiro Eclesiástico da Embaixada de Portugal junto da Santa Sé. Escreveu vários livros sobre Roma, a mensagem de Fátima e outros temas. As suas obras e as qualidades de que era dotado continuam a merecer-lhe ainda hoje o apreço de quem o conheceu e com ele conviveu. Testemunhos de uma acção heróica A ternura de Deus manifesta-se não apenas directamente mas também através das pessoas. Ele mesmo as escolhe para seus ministros, mensageiros e instrumentos e lhes dá a capacidade de fazerem o bem. Monsenhor Joaquim Carreira, cujo centenários de nascimento ocorre no dia 8 de Setembro, praticou o bem por palavras e gestos simples, mas também por actos heróicos, acolhendo perseguidos, durante a guerra, em Roma, nos anos 1943 e seguintes. Ao seu lado estiveram alunos e funcionários do Colégio Português. Várias cartas relatam e agradecem o amor de que beneficiaram. Quando a gratidão perdura no tempo e se repete é sinal de que o benefício deixou marcas profundas na memória das pessoas. Um dos refugiados refere o aumento destes no Colégio e o tratamento que receberam. Eram dezenas de professores, estudiosos, comerciantes, militares, estudantes, hebreus: “todos puderam, a seu modo, experimentar a bondade e o espírito de altruísmo do Reitor, que, com verdadeira caridade cristã e nobre generosidade, desafiou as ferozes leis de guerra alemãs e fascistas, para ajudar aqueles que, como nós, se encontravam expostos ao perigo”. Nesta acção, os padres portugueses, diz outro, “arriscavam-se a muito – e sabiam-no. Mas nunca nos deram a perceber que estávamos a mais. Pelo contrário, rodeavam-nos, a cada instante, de atenções, procurando tornar-nos a vida o mais agradável possível”. E conclui o depoimento de admiração, afirmando: “Em nome da caridade cristã, um punhado de corajosos sacerdotes portugueses sob a direcção do Rev.º Dr, Carreira fazia à sua maneira a guerra contra a injustiça e contra o arbítrio, contra a violência, contra o despotismo”. Um médico declara que ali experimentou o acolhimento fraternal dos “braços amigos” do reitor e uma “vida que deveria ser a de todos os homens – verdadeiros irmãos, sem distinção de raça, de religião, de nacionalidade”. Mesmo sem esquecer as “tristes e cruéis vicissitudes da guerra, viverá sempre em mim a lembrança daqueles poucos dias passados na paz tão hospitaleira e fraterna do Colégio Português”. Outro médico, na altura estudante, fala do reitor que aparecia “em toda a parte com o seu sorriso a alentar a nossa mocidade deprimida”. Se “Roma sofria as torturas da fome”, no Colégio, “em nossa mesa, nada faltava, graças à estremada diligência e aos sacrifícios de quem nos hospedava. Superior e alunos todos partilhavam das nossas angústias e das nossas alegrias”. Um engenheiro recorda a sua experiência de sete meses: “Guardo, ainda, uma maior admiração e gratidão para com o reitor, Dr. Joaquim Carreira, que foi para mim, mais do que para qualquer um dos hóspedes, pai e irmão, que me dispensou não só o conforto de sacerdote, mas também o da amizade e ainda o exemplo admirável do homem que não se deixa abater pelas dificuldades, que sabe assumir a responsabilidade, ainda que grave, no momento da crise e sabe perdoar de modo perfeito”. “Um oásis de serena espiritualidade, de alta intelectualidade e de afectuosa hospitalidade, eis o que encontrámos quando, perturbados pela situação geral e pessoal, entrámos no inviolável recinto do Colégio Português”, testemunha outro refugiado. E classifica a instituição como “ilha de paz no coração da cidade atormentada”. Outro falou dele como “o coração português na Itália”. Um ano depois do termo da guerra, no aniversário da aparição de nossa Senhora em Fátima, os que tinha encontrado abrigo no Colégio reuniram-se “em torno do altar” para agradecerem o benefício daquele acolhimento. Pe. Jorge Guarda