D. Elio Greselin, bispo de Lichinga, no norte do país, diz que falta nos católicos do país a dimensão social e política. Aos portugueses pede serenidade para saber que estão lá a servir e não a mandar
D. Elio Greselin foi ordenado bispo de Lichinga há quase um ano. Este missionário dehoniano conhece a realidade africana desde 1966, altura em que deixou Itália e se fixou em Moçambique. Depois da ordenação episcopal conheceu os 131 mil quilómetros da sua diocese sem carro. Insiste que os moçambicanos precisam de formação cívica. É esse o objectivo para o seu episcopado. A evangelização vem depois.
Agência ECCLESIA (AE) – Como é que um europeu vê a realidade moçambicana?
D. Elio Greselin (EG) – Desde 1966 que trabalho em Moçambique, com 15 anos de intervalo, entre 1975 e 1990, período que estive em Itália para investir em formação. Quando, em 1990 regressei não voltei a sair. Sou o primeiro bispo europeu, um missionário, depois de tantos anos em que houve bispos moçambicanos. A Conferência Episcopal aceitou-me muito bem. Os bispos já sabiam quem eu era, pois já tínhamos trabalhado juntos muitas vezes.
Quanto ao trabalho pastoral sinto que é preciso dar um salto de qualidade. Depois da II Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para África, (que decorreu no Vaticano em Outubro de 2009) precisamos de passar de uma Igreja preocupada com a catequização para uma Igreja preocupada com a paz, a justiça e a reconciliação. Na realidade, estes são problemas sociais, políticos também. Abre-se agora uma estrada totalmente nova. Penso que os meus colegas do episcopado sentem o mesmo. Precisamos passar de uma Igreja que ensina a catequese, para uma Igreja que ensina a viver como pessoas políticas, preocupadas com as questões sociais.
Precisamos integrar os catecismos da Igreja Católica: os existentes em língua local ou em português estão desactualizados. Precisamos inserir capítulos sobre a Doutrina Social da Igreja, sobre a política, sobre a pessoa humana, sobre a presença nas instituições. O adulto moçambicano cristão deve entrar, em especial a mulher que sempre foi posta de parte, nesta nova maneira de pensar. O adulto deve formar pessoas adultas, não apenas pessoas cristãs…
AE – Quer dizer que a formação religiosa dos moçambicanos não está em deficit, mas falta a prática?
EG – O catecismo que temos, até aos dias de hoje, é litúrgico e bíblico. Mas falta a dimensão social e política, na perspectiva integral do cristão de hoje. Não basta dizer que se sabe o catecismo, se baptiza e portanto a sua vida está completa. Falta um conjunto de valores – o problema das crianças abandonadas, os roubos e a riqueza em Moçambique, a má governação, a tirania de um partido único.
Devemos ter cristãos completos, inseridos na sociedade. A inculturação não é apenas ir às raízes culturais antigas africanas para perceber porque as pessoas vivem e pensam de determinada maneira. A cultura é acompanhar o crescimento do africano, da sociedade e tentar resolver os problemas desta sociedade com as pessoas de hoje. A palavra inculturação, que antes era uma palavra sagrada, tem de entrar na solução urgente dos problemas vitais do africano moçambicano.
Governo
AE – No contexto eleitoral de Outubro de 2009, D. Élio apontou o déficit democrático da sociedade moçambicana. O Presidente Armando Gebuza ganhou as eleições e tomou posse. Que balanço faz?
EG – As eleições foram muito confusas. Os bispos fizeram uma análise em Novembro, pouco depois das eleições, e percebemos que houve confusão em muitos locais. Foi a primeira vez que se registou um nível tão grande de abstenção. Significa que o povo não está satisfeito com a governação e apesar de o governo do Presidente da República, Armando Gebuza, ser um governo forte, não estão satisfeitos com o facto de o poder estar nas mãos da mesma pessoa – partido, governo.
A situação política pode ser aparentemente serena. Mas precisamos estar atentos, pois parece uma pequena ditadura de Estado. Não se trata de um tirano dominador, mas o partido absorveu tudo. O partido que está a governar deve estar muito atento para não perder a simpatia que existe para com as instituições do Estado. Não se podem esquecer as liberdades conquistadas pelo povo. A maioria não votou. O povo sente que esta situação não é transparente.
AE – A abstenção mostra uma omissão?
EG – Mostra um descontentamento com a forma como foram governados nos últimos tempos – um pequeno grupo que governa. Veremos o futuro. Os partidos devem trabalhar juntos, com respeito. O povo quer ser governado.
A nossa preocupação não é política, é evangelizadora. Não podemos deixar o povo. Estamos sempre do lado do povo. Como Igreja estamos dentro do povo. Pedimos que o governo seja sábio e nos ajude a resolver os problemas do povo. A saúde, a escolarização, a ética social, educação e evolução, juventude, mulher… são tão grandes os problemas que queremos colaborar. Não queremos seguir unicamente o que o governo indica. Queremos amadurecer juntos.
Para além da questão económica, que abarca o esbanjamento e a má governação em muitos locais que tem de acabar. Não podemos calar a opressão do povo. Os bispos estarão na primeira linha para indicar que as coisas não estão bem.
Desafios para a Igreja
AE – Que caminho abriu a II Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a África?
EG – Fiz essa pergunta a mim mesmo, aos meus padres e a outros bispos também. Quero colocar este último Sínodo como base do meu trabalho nos próximos anos. Eu tenho 72 anos. Daqui a pouco tempo terei 75.
Este Sínodo marca uma mudança da presença da Igreja na sociedade. Já não são problemas litúrgicos, de oração, de catecismos, mas são problemas vitais. A reconciliação, a justiça e a paz, Doutrina Social da Igreja, a presença na política, nas instituições do Estado, educar os adultos para uma presença robusta na resolução dos problemas vitais – educação, família, fome, convivência. Para que isso aconteça é preciso enfrentar os problemas sociais. O futuro da Igreja é o social. Há que ter coragem.
Quando li as intervenções dos bispos no Sínodo, a carta do Papa, as 57 proposições, fiquei satisfeito. Mas não podemos fazer como antes – «este é o pensamento que veio de Roma, aqui vou continuar a fazer como antes». Se eu fizesse isso, eu seria um ladrão e um estúpido. Um bispo que segue o seu caminho quando a sociedade segue outro. Penso que os bispos devem reunir-se em conferências episcopais regionais e depois a nível nacional, para traçar uma linha que vá direito à vida do povo. Não é um problema religioso, mas um problema político.
AE – Foi ordenado bispo demasiado tarde para o que gostaria de fazer?
EG – Eu estava no mato, não pensava em ser ordenado bispo. Estava a fazer missionação e estava satisfeito quando chegou a notícia para me apresentar. Não disse não. Mas foi uma coisa completamente nova, totalmente impensada.
Se em vez de ter quatro anos tivesse oito ou mais, seria diferente. Na minha diocese eu quero atingir a autonomia económica, a formação integral, a formação das comunidades cristãs, quero chegar a um plano estratégico da diocese. Não vou ficar parado. Claro que precisaria mais tempo. Precisamos preparar urgentemente uma equipa de bispos africanos capazes de tomar conta das dioceses africanas. Não deve haver dioceses desprevenidas, mas a caminhar com as suas pernas.
AE – Quer ser um bispo de transição?
EG – Não tenho 20 anos à frente. Temos de colocar pessoas à frente com uma transparência total, de uma vida moral única, de uma vida de relação com o povo e de serviço. Daqui a três anos, digam sim ou não, eu vou pedir a resignação. Mas se disserem sim, eu quero entregar a minha diocese a um bispo com estruturas diocesanas seguras e ele deverá respeitar o meu caminho porque é para o bem do povo. Deverá também responsabilizar os meus padres diocesanos, religiosos e religiosas, as pessoas missionários. Daqui para a frente não somos mais uma diocese dependente, mas uma diocese que tomou o seu rumo.
AE – Esse é o desafio para o seu clero?
EG – Sim. O meu clero sabe isso. Passei 10 dias de férias com eles. Só nós, sem mais ninguém. Mas foi um tempo também para discutir. Que problemas sentem? Como podemos resolver? E todos concordaram com os desafios lançados na assembleia diocesana pastoral. Passámos um tempo juntos e encontrámos pistas e pilares para os próximos quatro anos. Nessa altura quero celebrar um Sínodo diocesano. Quatro anos é pouco tempo, mas já será alguma coisa.
Portugal missionário
AE – Antes de ser bispo foi missionário. Moçambique é uma terra de missão para muitos portugueses. Como acompanha este trabalho?
EG – O voluntariado católico é uma grande bênção. A experiência que tenho com os missionários portugueses é muito positiva. A presença forte de leigas jovens e mulheres é um sinal de futuro. Os leigos são um sinal de futuro. Na promoção da mulher africana, quem está mais preparado para fazer este trabalho? A formação da juventude, na saúde e educação? É claro que trabalhamos para formar líderes africanos, mas Portugal que sempre esteve ligado a Moçambique tem um grande campo de trabalho.
AE – O que pede aos missionários portugueses?
EG – Que levem a serenidade para saber que estão lá a servir e não a mandar. Já passou o tempo colonial. Temos de fazer tudo para que sejam os moçambicanos a crescer e nós a diminuir. Quem parte deve saber que a sua vida não é dominar, mas servir e dar a vida pelos outros, tendo presente que há moçambicanos que têm liberdade, personalidade e autonomia que podem ajudar e aconselhar.
Não somos nós a decidir, nós ajudamos. Podemos aconselhar e ajudar a crescer. A formação será sempre o primeiro passo. Nas minhas preocupações pastorais, em primeiro lugar não surgiu a evangelização, mas a formação. A evangelização vem depois, surge depois a comunidade e os sacramentos. Hoje precisamos prestar atenção aos sinais desta sociedade em evolução e precisamos estar ao serviço dela.