D. Luiz Fernando Lisboa é o convidado desta semana da Renascença e da Agência Ecclesia, num momento em que mais de 30 organizações da sociedade civil portuguesa manifestaram o desejo de que o Governo português a e União Europeia se envolvam na solução da crise humanitária que a atinge a região de Cabo Delgado
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Tem sentido esta disponibilidade em ajudar por parte das organizações da sociedade civil portuguesa?
Tenho sentido, sim, desde… Não vou dizer desde o início da guerra, mas desde a metade da guerra para cá – e já dura há mais de três anos. A sociedade civil portuguesa e, sobretudo, as organizações católicas, várias delas entraram em contacto connosco e começaram a fazer algum tipo de trabalho no sentido de nos tentar ajudar, para que atendêssemos à crise humanitária, às pessoas que estavam deslocadas. A Arquidiocese de Braga, com quem a Diocese de Pemba tem uma parceria, e outras organizações, aos poucos, foram entrando.
E da parte do Governo português, e da União Europeia, sente essa vontade na procura das melhores soluções para aquilo que chamou de guerra?
Eu diria que demorou um pouco, mas o importante é que agora as autoridades já se estão a envolver. Há poucos dias tivemos a visita do ministro português (João Gomes Cravinho, ministro da Defesa), que representava a União Europeia. Também tivemos contactos de outras autoridades de Portugal, tanto o primeiro-ministro como o presidente da República, através de telefonemas, de gestos concretos, manifestando a sua preocupação.
Como descreve a realidade atual em Cabo Delgado? O número de deslocados tem vindo a aumentar?
Continua a aumentar, porque a guerra, infelizmente, continua. Nestes últimos dias, tivemos alguns ataques em várias cidades – Palma, Macomia, Nangade. As poucas pessoas que ficaram, com estes ataques a tendência é sair. Quer dizer, todas procuram uma maneira de sair, quem não sai é porque não pode, por causa das finanças, porque não tem dinheiro para pagar os ‘chapas’, que triplicaram os preços. Outros não saem porque não têm como sair.
Quem está em Palma, por exemplo: por terra, não se pode passar; noutra região, que já atacaram várias vezes, ninguém pode passar por terra. As embarcações são muito caras e é preciso lembrar que, no mês de dezembro, uma embarcação afundou e morreram muitas pessoas. De avião, é muito caro, porque são voos pequenos e a população não têm a mínima possibilidade de pagar.
Então, nesta altura já são mais do que 500 mil deslocados?
Sim, eu acredito que já ultrapassa os 600 mil.
Quais as principais necessidades da população? A maior preocupação continua a ser a situação das crianças? Tem sido fácil fazer chegar a ajuda?
Não tem sido fácil, primeiro porque não há ajuda suficiente para todos. Em segundo lugar, estamos no período de chuvas, neste momento. As pessoas que estão nos acampamentos, sobretudo na região de Metuje, a 40 e poucos quilómetros de Pemba, estão debaixo de lonas, de barracas muito precárias e agora enfrentam – além da falta de alimentação, de um lugar digno, etc. – também o problema da chuva. Essa é a minha principal preocupação e é claro que, entre os mais vulneráveis, a nossa preocupação maior são as crianças, porque são aquelas que mais sofrem.
É muito difícil ter ajuda suficiente para todos; depois, há o problema da chuva. O Governo tem feito um esforço de reassentar, a ideia é levar imediatamente essas pessoas, mas isso não é possível se não se tiver criado as condições mínimas no lugar para onde vão: se não há água, se não há um mínimo de organização. Não é possível, seria deslocar as pessoas para um lugar pior. As organizações não-governamentais têm questionado, têm pedido ao Governo que se criem as condições para depois transferir as pessoas.
Da parte das autoridades moçambicanas, que no início se mostraram reticentes a aceitar ajuda, há agora outra vontade?
Sim, contra factos não há argumentos. No início, houve uma tentativa de negar, esconder um pouco essa guerra, essa situação, essa crise humanitária. Depois, com a palavra da Igreja, que foi sempre presente, falando sobre a guerra, sobretudo depois que o Papa Francisco começou a entrar, a falar sobre a guerra, a telefonar para o bispo, enviou ajuda… Isso também foi muito importante, no final de 2020 ele enviou uma ajuda significativa, o que movimentou outras organizações de Igreja, dioceses, a fazerem algum gesto.
E a 18 de dezembro, o Papa recebeu-me no Vaticano. Esse é outro gesto, para mostrar que está preocupado com a guerra, com esta crise humanitária, e quer ver soluções, por parte das autoridades.
E o que significou para si essa audiência, o que pode partilhar connosco desse encontro?
Quando eu fui chamado, pensava que o nosso encontro seria de 3 a 5 minutos. Na verdade, foram 45 minutos, o Papa interessou-se, ouviu tudo aquilo que eu tinha para contar, fez muitas perguntas, e mostrou claramente a sua proximidade com o povo de Cabo Delgado. E claro, não só, há guerras noutras regiões que têm preocupado o Santo Padre. Mas naquele momento, concretamente, ele quis saber do povo de Cabo Delgado, mostrou a sua proximidade e disse que continuaria a rezar e a ajudar aquele povo.
Numa das entrevistas que concedeu garantiu que “ninguém vai silenciar a Igreja”. Referia-se a alguma situação em particular?
Em todos os lugares e em todos os tempos, muitas vezes tentaram silenciar a Igreja. Há pessoas que equivocadamente, pensam que a Igreja, ou os líderes religiosos devem ficar só dentro da Igreja a rezar. E a evangelização vai muito além disso. É muito mais do que isso. Nós não trabalhamos com o espírito das pessoas. Nós trabalhamos com as pessoas concretas, que têm dificuldades que passam por violências, por limitações que têm necessidades. Então, a Igreja em qualquer lugar, ela vai levantar a sua voz e algum momento ela vai ser a voz daqueles que não têm voz. E isso normalmente pode incomodar. Então em todos os tempos sempre aconteceu isso. Isso é normal que aconteça.
A Igreja que na região de Cabo Delgado tem sido decisiva na procura de soluções para os deslocados… Quais são os desafios que se colocam às comunidades católicas?
Nós tivemos de nos reinventar. Essa é uma palavra que se usa muito neste tempo da pandemia, mas nós usamo-la também para a questão da guerra. Toda a nossa pastoral teve de ser adaptada a esta situação que estamos a viver. Tanto da guerra e agora com o covid-19 que aumentou também em Moçambique, infelizmente. Então, todos os missionários que estavam nessa região atingida pela guerra tiveram que sair e estão recolocados em outras regiões da província. E estamos praticamente todos a trabalhar em função dos deslocados; atendendo, visitando, olhando as necessidades, reunindo essas pessoas para dar um amparo, um apoio psicológico, enfim, aquilo que elas mais necessitam. E até fora da província. As dioceses vizinhas: Nacala, Nampula, têm ajudado também porque têm recebido pessoas de Cabo Delgado.
Na sua opinião, o conflito – os atos terroristas – é possível de minimizar, ou mesmo de terminar a breve prazo? Ou vamos continuar a ter muitas mais pessoas deslocadas pelo medo que a violência acarreta?
Talvez seja possível com a ajuda externa que agora começamos a ter, sobretudo da União Europeia e da região, é possível que este conflito termine em alguns meses, embora eu não consiga quantificar o tempo…
Mas há uma nova esperança?
Há uma nova esperança. Porém essa situação dos deslocados não se resolve num passo de mágica. São pessoas, são vidas, são histórias; e eu tenho dito que nós levaremos muitos anos para reconstruir. Porque não são apenas reconstruções de casas, de prédios, mas reconstruções de pessoas, de vidas e de histórias. E isso vai levar ainda muito tempo de trabalho para o Governo, para a sociedade civil, paras organizações internacionais, para a Igreja. Nós temos muito trabalho pela frente.
Há relatos de aumento de situações de cólera e de incremento da crise pandémica no território. Estaremos próximos de uma tempestade perfeita?
Infelizmente, essas situações de cólera, nós normalmente já temos anualmente, só que estão criadas condições para que isso aumente muito mais por causa da aglomeração, por falta de saneamento, por falta de água tratada… então são condições que acabam por ajudar para que essas situações apareçam.
Nós costumávamos dizer que a Covid para nós estava em segundo plano, só que agora Moçambique está a aumentar os casos de uma maneira assustadora. Nós temos em Pemba já vários casos. Nós temos já na nossa equipa missionária pessoas que contraíram. Então a situação vai-se agravando, infelizmente. Porque além de lidar com toda a situação da guerra nós temos o covid e temos essas situações de cólera e outras.
Uma das preocupações do Papa tem sido uma distribuição equitativa das vacinas. Em Portugal o processo já começou, também no Brasil. Seria importante que o chamado mundo desenvolvido olhasse para os países mais pobres e se preocupasse também com a vacinação nesses países?
Com toda a certeza. Eu penso que os países têm direito a olhar para os seus cidadãos, mas nenhum país pode ficar a olhar só para si, só para dentro. Não é justo que os países corram para vacinar toda a sua população e que a Africa fique esperando para só quando terminarem.
Mas há esse risco?
Há esse risco sim, que a Africa fique para último. Isso não é justo. Nós temos problemas como todo o mundo tem, nós temos problemas aumentados ainda por causa da exploração na Africa. Não é justo que isso aconteça. É importante que a OMS – Organização Mundial da Saúde – cobre das autoridades, cobre dos países mais desenvolvidos que redistribuam, que haja uma distribuição mais equitativa das vacinas.
Por último, sabemos que, por razões pessoais se teve de deslocar ao brasil. O país vive também uma crise sanitária sem precedentes e há também movimentos de forte contestação ao Governo de Bolsonaro. Soubemos que alguns Líderes religiosos do Brasil entraram com um pedido de destituição contra o Presidente, Jair Bolsonaro, por alegada negligência no combate à covid-19, num documento assinado por 380 pessoas, entre as quais bispos e pastores.
Como classificaria a situação no seu país natal?
A situação no país, no Brasil é calamitosa. Eu penso que muitas mortes poderiam ter sido evitadas se houvesse por parte do Governo central uma comunicação maior com a população, um incentivo à população para os devidos cuidados. O que houve foi um negacionismo, quase que uma brincadeira com a pandemia, e o resultado está aí. Há cerca de 60 pedidos de Impeachment ao Presidente na Câmara dos deputados. E agora um grupo de líderes religiosos assinou mais um pedido de impeachment que se justifica porque o resultado do deboche, da maneira como foi tratada a pandemia, está aparecendo agora nos resultados. Tanto é que o Governo tem agora uma posição totalmente contraria há que tinha inicialmente. Então, isto mostra não só que os governantes daqui, mas em outras partes do mundo também, tiveram obrigatoriamente de mudar a sua opinião porque essa pandemia não é uma brincadeira. Não é como eles levaram no início.