Homilia do Cardeal-Patriarca na Solenidade da Santíssima Trindade 1. Num ano em que a Igreja de Lisboa, sacudida pelo Congresso da Nova Evangelização e conduzida pela palavra do Papa, ousa conceber toda a acção pastoral como concretização da caridade, somos interpelados a redescobrir o sentido profundo e original desta celebração da Igreja Diocesana na Solenidade litúrgica da Santíssima Trindade. E esse sentido profundo só o podemos encontrar na relação vital entre o mistério da Santíssima Trindade e o mistério da Igreja. A Igreja é o Povo que o Senhor escolheu. Ela é, depois da criação, a principal concretização da fecundidade do amor divino, a expressão do carácter expansivo do amor que, plenitude da vida, comunica a vida. Ela aparece como família, à imagem da Família divina, onde reconhecemos a Deus como Pai, nos identificamos com o Filho, dinamizados pela mesma força criadora do amor divino, que é o Espírito Santo. A Igreja é obra do Espírito, revelação permanente da força transformadora do Amor. A sua origem é o amor, a sua lei é o mandamento novo do amor, o termo para que caminha é a plenitude do amor. O Concílio definiu-a como “um Povo que tira a sua unidade da unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (L.G. n.4). E essa unidade é a sua vocação e principal desafio, ainda imperfeitamente vivida, mas desejada e procurada: unidade de fé, unidade no amor, unidade de missão. Somos muitos e muito diferentes, mas quer Deus que sejamos um só, em Jesus Cristo. E essa é a garantia de reconhecermos um só Deus, nosso Pai, e nos sentirmos movidos pelo mesmo Espírito, nas lutas da vida e nos desafios da missão. 2. Entramos na Igreja pelo baptismo que, por vontade expressa do Senhor Jesus, nos é administrado em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. O baptismo é o acontecimento silencioso e tantas vezes esquecido, que mudou a nossa vida. Uniu-nos a Cristo, à Sua Pessoa, sobretudo à Sua morte e ressurreição; e assim unidos a Ele, mergulhámos no seio da Trindade, conduzidos pela força do Espírito. Fazendo um só com Cristo, só podemos viver a vida de Cristo como Ele a vive, glorioso, sentado à direita do Pai, em comunhão de amor. Como ensina o Apóstolo Paulo aos Romanos, entramos no mistério da Trindade pelo Filho, na nova situação de “filhos no Filho”: “O próprio Espírito dá testemunho, em união com o nosso espírito, de que somos filhos de Deus” (8,16). E é essa elevação à situação de filhos, participando da filiação divina de Jesus, que nos leva a reconhecer em Deus um Pai e a amá-l’O com amor filial. Continua o Apóstolo: “Vós não recebestes um espírito de escravidão para recair no temor, mas o Espírito de adopção filial, pelo qual exclamamos «Abbá, Pai»” (8,15). No baptismo o cristão pode vencer o medo de Deus. O único temor que pode ter lugar na nossa relação com Deus Pai é o receio de não corresponder ao Seu amor. 3. A manifestação do mistério Santíssima Trindade exprime a plenitude da revelação de Deus, tornada possível pela encarnação do próprio Filho de Deus. Aos crentes do Antigo Testamento foi revelada a origem divina da Palavra e o poder criador e luminoso da Sabedoria. Mas só em Jesus Cristo nos é revelado que a Palavra é uma Pessoa divina, o Filho, e que a Sabedoria é o Amor de Deus, a Pessoa do Espírito Santo. Encarnação do Verbo, Jesus Cristo não é apenas revelação da mensagem divina, mas encarnação do amor divino. Nele sentimo-nos amados por Deus e por isso O escutamos com solicitude amorosa. Na sua Carta Encíclica o Santo Padre Bento XVI diz-nos: “Em Jesus Cristo, o próprio Deus vai atrás da «ovelha perdida», a humanidade sofredora e transviada” (n.12). Em Jesus Cristo, tocamos o amor de Deus pela humanidade, manifestado na densidade de um drama, em que Deus parece voltar-Se contra Si mesmo, para salvar os homens. Aliás a dimensão dramática do amor só se capta em Jesus Cristo. 4. Como pode a Igreja viver este mistério insondável? E no entanto, se não o viver, nega-se a si mesma e afasta-se da sua verdade, aquela fonte única de onde pode jorrar a nossa felicidade. Apesar de insondável, este mistério abre-se para nós com a própria simplicidade de Deus. Porque entramos nele por Jesus Cristo, é na relação com o Senhor ressuscitado que aprendemos a viver no seio da Trindade, na comunhão de vida e de amor. A Eucaristia, momento decisivo da verdade da Igreja, é a epifania do mistério da Trindade na simplicidade da nossa vida. E essa é a “mística” deste sacramento, como lhe chama o Santo Padre. Diz ele: “A Eucaristia arrasta-nos no acto oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da Sua doação. A imagem das núpcias entre Deus e Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebível: o que era estar na presença de Deus torna-se agora, através da participação na doação de Jesus, comunhão no Seu Corpo e Sangue, torna-se união. A «mística» do sacramento, que se funda no «abaixamento» de Deus até nós, é de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer mística elevação que o homem poderia realizar” (n.13). O “abaixamento” por amor, para ir ao encontro da pessoa amada, torna-se a característica do amor cristão, onde se vencem os orgulhos, os egoísmos, a exagerada afirmação de si próprio. É a regra da Igreja comunhão, é o segredo do amor conjugal, é a força que nos leva ao encontro dos irmãos. Não há maior prova de amor do que dar a vida por aqueles que amamos. E isto só é possível em Jesus Cristo, com a força do Espírito que Ele nos dá e celebra-se na Eucaristia. É por isso que toda a oração da Igreja é dirigida ao Pai, por Jesus Cristo, Seu Filho, na unidade do Espírito Santo. A vivência da Eucaristia projecta-nos para a experiência do amor trinitário. Com Jesus Cristo só podemos ter uma experiência de Deus: a de um Pai amoroso e misericordioso, a cujo amor nos abandonamos. E esse amor é o louvor que lhe devemos. Quase sem darmos por isso, na simplicidade das nossas rotinas, dizemos muitas vezes ao dia: “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”. Quando o dizemos exprimimos um sentimento íntimo que brotou da Eucaristia, expressão do nosso amor, do nosso desejo, da nossa esperança, outras tantas expressões da nossa adoração. 5. Maria, mulher da Trindade, ensinar-nos-á a mergulhar nesse mistério, com a solicitude de uma Mãe que encaminha os filhos para o sítio certo. Porque a Sua relação com Jesus é única, porque é Sua Mãe, ela participa na relação do Filho com o Pai de uma maneira especial. Ela está, desde a plenitude de graça com que foi concebida, na intimidade da comunhão trinitária. Percorrendo connosco os caminhos desta vida, ela exprime sempre e em tudo essa plenitude de graça, que é perfeita comunhão de amor. O lugar especial que damos a Nossa Senhora na nossa busca de Deus é uma das tais maneiras simples de mergulharmos no insondável mistério de Deus Uno e Trino. Mãe da Igreja, guia-a para ser, em cada dia, esse Povo do Senhor, que encontra a sua força e verdade na comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Mosteiro dos Jerónimos, 11 de Junho de 2006 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca