Cidade partida em dois espera um futuro melhor 1 – Podemos dizer que, neste momento, em Díli, há duas cidades: a cidade do centro, do comércio e dos serviços públicos, com as ruas vazias, as lojas fechadas, onde só os carros militares e de socorro circulam, onde eu, embora correndo riscos, andei esta manhã para contactar a embaixada portuguesa, ir ao correio e a este centro de Internet. Há, em Díli, uma outra cidade, a dos bairros: a cidade das cinzas, do deserto, dos bandos, do risco permanente, onde ninguém vive, a não ser algum moribundo, ninguém vai, a não ser algum grupo policial. Entre estas duas cidades estão os dois seminários da Diocese com cerca de 7 mil refugiados, os dois complexos escolares das Irmãs Canossianas com mais de 11 mil, os ginásios de São João Bosco com cerca de 10 mil e as diversas paróquias com um número difícil de calcular. A fuga, porém, não terminou; nem a procura de refúgio, dentro da cidade ou saindo mesmo dela para o interior do país. Só ficaram em Díli os mutilados: os que não têm pernas para andar, ou carro, ou dinheiro para transportar as suas coisas. 2 – Entre os atingidos, estão também dois padres: o padre Mouzinho, reitor do seminário menor, quando transportavam populares para lugares de refúgio foi baleado e está em Darwin para ser operado; o padre Agostinho Soares a quem incendiaram a casa logo nos primeiros dias dos confrontos. Mas, a verdade é que a violência continuou em grandes zonas da cidade. As pessoas continuam a fugir de Díli. As que aqui ficaram procuram comida; não a encontrando pelas vias normais, roubam e saqueiam lojas ou armazéns. As habitações e também os edifícios públicos continuam a ser destruídos. Nós próprios acolhemos aqui várias pessoas, que depois foram, mas outras vieram, entre elas uma mulher grávida. Talvez por todas estas dúvidas de insegurança, grande parte dos 150 professores está a regressar a Portugal, antecipando assim o final do ano, pois os alunos estão dispersos física e psicologicamente, e jamais voltariam às aulas dentro de dois ou três meses. 3 – Chegaram as forças da Austrália. Apresentam-se com grande aparato militar: pesados tanques, helicópteros, navios de guerra; a sua actuação limita-se, porém, a ver, desarmar e dissuadir os que destróem e matam. Domingo passado chegou a GNR. Apareceram como um sinal de esperança para esta gente que tem uma admiração especial por estes militares portugueses. A sua chegada foi simplesmente apoteótica. Desde o desembarque em Baucau até Díli a caravana militarizada foi continuamente aclamada e aplaudida pelas populações locais. Homens e crianças corriam tentando acompanha-los na estrada; mulheres choravam enquanto atiravam ramos verdes e mãos cheias de pétalas de flores para dentro das viaturas, como se de uma procissão religiosa se tratasse. Parecia a festa à volta de uma equipa que tivesse ganho alguma taça. Oxalá que tanto eles como nós, presentes em Timor, mereçamos estas flores e saibamos transforma-las em pão. 4 – Timor, o jovem país com 4 anos de independência, passa, nestes dias, por uma experiência de crise militar, social e também institucional. Tudo tem as suas causas. Algumas causas estruturais: – País economicamente pobre, sem agricultura, sem indústria, sem investimentos, apenas com o petróleo à vista, uma riqueza ainda muito virtual, porque muito distante de chegar ao povo. – historicamente, Timor esteve sempre dependente de potências exteriores: durante muitos anos, por um país distante e sem grandes possibilidades; ultimamente, invadido e violentamente oprimido pelo país vizinho. – Sociologicamente, trata-se de uma ilha dentro da dispersão das milhares de ilhas da Indonésia, com muitos grupos étnicos, sem organização social, a sobreviver apenas com os apoios externos. – Culturalmente, tem muitas carências no campo da educação e do desenvolvimento comunitário, numa confusão de línguas e dialectos, além do português e indonésio. – Politicamente, numa nação com 4 anos de vida, falta a experiência de governo e de gestão, porque sem quadros e técnicos nacionais, como o dizem os presentes acontecimentos. – Mesmo religiosamente, apesar de ser um povo com muita fé em Deus, acredita pouco nos homens e, por isso, sem grande esperança no futuro… Resta-lhe uma extraordinário capacidade para o sofrimento. Algumas causas remotas: – Um país pequeno no tamanho e sem recursos humanos e materiais é sempre mais vulnerável a qualquer sintoma tanto de ambições externas como de movimentos internas. – Sistema de governo anacrónico para a cultura desta gente. O partido com maioria parlamentar, é de ideologia marxista e tem-se confrontado com algumas manifestações populares a contestar algumas orientações políticas. – Governação insegura, com falta de transparência nalgumas questões. Além disso, o passado pouco exemplar de alguns governantes junta-se ao desacordo da maioria católica que nunca aceitou ver o seu país governado por um primeiro-ministro muçulmano. – A Igreja, não só foi tolerando esta surdina de inconformismo popular, mas também, mais de uma vez, diplomaticamente, a facilitou. Causas próximas: – A exclusão do exército de mais de 500 militares, oriundos todos da mesma área geográfica e a exigência de serem novamente reintegrados no exército. – Actos de violência, em Díli, durante uma manifestação pacífica destes militares demitidos. – Desencontro de ideias entre os diversos órgãos de soberania e a consequente falta de coordenação dos meios a aplicar para a pacificação. – Posteriormente, uma forte contestação popular ao governo e à pessoa do primeiro-ministro. 5 – Esta é apenas mais uma Estação da longa Via-Sacra da história de Timor-Leste. Oxalá seja aquela que vem depois da Décima Quarta. Já é tempo de este povo ver o seu Sol-Nascente elevar-se sobre as montanhas, e atingir o meio-dia da estabilidade e da paz. Quando hoje andei pela cidade de Díli vi de tudo: desolação e ternura. Para além das lágrimas, ficaram as casas queimadas, as ruas vazias, as esperanças mortas… e as flores para Portugal. Frei Manuel Rito Dias, em Dili