Missionário português em Roraima denuncia «terrorismo» dos grandes fazendeiros

Pe. Mário Campos fala de ameaças de morte, de raptos e da missão da Igreja na defesa das comunidades indígenas No mês de Janeiro de 2003, os Missionários da Consolata em Roraima, no Brasil, saltaram para as primeiras páginas dos jornais, depois de terem sido raptados por causa da sua luta ao lado dos indígenas e contra os grandes fazendeiros brancos. Em questão estava o controlo de uma área que corresponde a 1.651.300 campos de futebol, localizada numa zona encravada entre a Guiana e a Venezuela – a chamada zona “Raposa Serra do Sol”, uma região onde vivem perto de 15 mil indígenas. O padre Mário Campos, português, que trabalha na missão há três anos e meio, seria um dos alvos dos raptores, mas não estava na missão na noite da invasão. Agora, de passagem por Portugal, fala destas lutas e do “terrorismo” dos grandes proprietários contra aqueles que lutam pelos direitos das populações indígenas. Agência ECCLESIA – É fácil perceber que a acção dos missionários não é bem-vinda por toda a gente… Pe. Mário Campos – Não é, de facto. Na terra indígena “Raposa Serra do Sol”, que é uma área que representa cerca de 1/5 do território português vivem 8 fazendeiros, que são quem nos persegue directamente: ameaçam-nos de morte, foram eles os mandatários do sequestro dos meus colegas no ano passado, já destruíram comunidades indígenas, enfim, um verdadeiro terrorismo, porque não tem outro nome. As ameaças de morte são muito claras e às vezes proferidas em público na rádio e na televisão. AE – Como se reage a uma situação dessas? MC – O nosso trabalho é ao lado dos índios e eles entendem estas coisas. Juntos vamos construindo e tentando encontrar o melhor caminho para todos. Nós Existimos Com a Campanha «Nós Existimos», os missionários recolheram assinaturas num abaixo-assinado entregue ao Governo Federal do Brasil, onde solicitavam a homologação da terra indígena “Raposa Serra do Sol”, a aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas, a punição dos envolvidos num escândalo de corrupção e a não-concessão de incentivos fiscais aos latifundiários plantadores de arroz irrigado, soja e acácia mangium. AE – É importante que as pessoas em Portugal tenham conhecimento de todas estas situações? MC – Eu acho que é fundamental, antes de mais para o bem dos povos indígenas e para a nossa própria sociedade. Não só em Portugal, mas em toda a Europa, temos procurado informar as pessoas, sobretudo nos momentos de maior crise. Felizmente temos tido boa aceitação e esse trabalho teve um impacto muito positivo em favor dos índios. AE – A campanha “Nós Existimos” foi um sucesso… MC – Essa campanha deu origem ao que é, neste momento, o movimento “Nós existimos”. Nele estão englobadas vários organismos sociais, sectores da Igreja, sindicatos e organizações indígenas. No fundo é uma aliança dos indígenas, dos trabalhadores rurais e da Igreja que está a resultar a 100%, obrigando a várias políticas no Estado de Roraima. AE – A Conferência Episcopal Brasileira (CNBB) acompanha de perto todas estas acções. Como vê esse interesse? MC – Posso dizer que nestes 3 anos em que lá estou, foram já duas as ocasiões em que o próprio presidente da CNBB se deslocou a Roraima, em gestos públicos de solidariedade pelo trabalho dos missionários. Além disso, são já muitas as vezes em que a CNBB intervém oficialmente, através de comunicados, junto do Governo e da sociedade, em favor da terra indígena “Raposa Serra do Sol”, cuja luta é emblemática. Vitória e desilusão No passado dia 15 de Abril, o presidente do Brasil, Lula da Silva, assinou o decreto de homologação da Terra Indígena “Raposa Serra do Sol”. O acto causou enorme satisfação e regozijo entre os índios e todos os que, no Brasil e no mundo, de alguma maneira, ajudaram a tornar a homologação uma realidade. AE – Este era, verdadeiramente, o momento que todos esperavam? MC – Foi uma autêntica vitória, um momento de grande alegria acompanhado de grande expectativa e de muita ansiedade. Para se ter uma ideia do impacto desta decisão, o governador do Estado de Roraima declarou uma semana de luto no dia 16 de Abril. Isto mostra quão anti-indígena é esta sociedade. Logo no dia 17 de Abril, foram raptados 4 polícias federais que viriam a ser libertados sob a condição de que a polícia federal saísse da área – para que os fazendeiros pudessem continuar o seu domínio. AE – A mudança está, portanto, ainda por acontecer? MC – Esta é uma situação que nos deixa muito apreensivos, muito preocupados, porque as comunidades indígenas sentem-se defraudadas nos seus direitos. Pastoral Indigenista A Diocese de Roraima fez a sua opção preferencial pelos povos indígenas no Estado de Roraima, através das suas diferentes acções pastorais. A Pastoral Indigenista, nos seus mais de 30 anos de compromisso e serviço, tem 44 missionários/as consagrados/as e leigos/as, que procuram, com a presença solidária, apoiar o processo de autonomia cultural, social, económica, religiosa e política dos povos indígenas, animando as suas organizações. AE – A Pastoral Indigenista é uma dinâmica com três décadas, mas a presença missionária já tem séculos. Esta diferença mostra algum receio em relação a um tipo de trabalho mais “político”? MC – O nosso trabalho, numa situação destas, tem muito também de político, mas não de partidário. São povos que foram esmagados e perseguidos, ainda hoje o são, e que têm direito à sua autonomia. Permitir que eles vivam melhor, segundo os seus direitos, também faz parte da nossa missão e essa consciência foi-se ganhando ao longo dos anos. Nunca se deixou de lado, porém, a pastoral da cidade, que hoje tem uma grande importância. AE – A acção missionária é muito diferente da que se poderia fazer noutra parte do mundo? MC – A Pastoral Indigenista é, de facto, uma opção fundamental da Diocese de Roraima, uma área predominantemente indígena, habitada por povos muito diferentes, que já lá estão desde tempos imemoriais. Esta opção passa por um estilo de trabalho, com uma presença muito atenta, que procura abrir-se ao diálogo com a cultura e a tradição desses povos. A nossa missão é escutar, sobretudo. O método de trabalho é o acompanhamento das suas organizações e, lado a lado com eles, tentar garantir os seus direitos, para manterem a sua liberdade. AE – Qual é a estrutura pastoral em Roraima? MC – Em toda a Diocese, mesmo na cidade, não existe uma única paróquia, o sistema é totalmente diferente. Aqui o importante é o envolvimento dos leigos, até porque são áreas muito extensas – eu sozinho teria a meu cargo 30 comunidades indígenas, separadas nalguns casos por 200 quilómetros. Além disso, é fundamental que as comunidades se aliem umas com as outras. AE – Como é o confronto entre a ancestralidade das tradições indígenas e a “Boa Nova” dos missionários? MC – Esse é um aspecto muito interessante, porque esta é uma das poucas áreas no mundo em que os missionários estão presente porque os índios foram chamá-los. A Evangelização teve como base a Palavra de Deus e os índios ainda hoje deixam tudo para ler, ouvir e discutir uma passagem do Evangelho. Ora, um trabalho que tem como centro a Palavra de Deus é algo que liberta e que entra em diálogo com as tradições e culturas indígenas.

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