O cardeal D. Oscar Rodríguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa, Honduras, e presidente da Cáritas Internacional, esteve em Portugal e antecipou à Agência ECCLESIA o que pode significar para a Igreja e para a sociedade, no seu todo, o jubileu que o Papa Francisco convocou, centrando as atenções na misericórdia e na atenção aos que mais sofrem
Agência ECCLESIA (AE) – O Papa decidiu convocar um Jubileu da Misericórdia, um Ano Santo com atenção especial para os que mais sofrem. Como podemos compreender este gesto?
D. Oscar Rodríguez Maradiaga (ORM) – O Santo Padre viveu na sua própria pele esta necessidade de sublinhar a misericórdia. Ao celebrar os dois anos de pontificado do Papa Francisco, no meu país, dizia que se tivesse de o resumir em poucas palavras, a primeira seria misericórdia, a primeira. Ele vive profundamente no coração de Cristo e apercebe-se de que as pessoas não precisam de mais Teologia – e depois de um Papa teólogo como Bento XVI, é muito difícil que alguém tenha a pretensão de o completar.
A doutrina está feita, o que é preciso é que as pessoas se aproximem da Igreja, inclusive os católicos que se mantiveram a uma certa distância. Para trazer as pessoas para perto da Igreja, eram necessários sinais como os que o Papa Francisco está a cumprir, uma Igreja em saída, que dê “sarilhos”, como ele diz, que seja uma espécie de hospital de campanha para curar tantas feridas.
A mim sensibilizou-me muito esta expressão, porque há muitos católicos que precisam de cura e não vão à clínica especializada, mas ao hospital de campanha, ao pároco que está perto deles, que vive no bairro, e que tem a sua confiança, porque os conhece todos.
AE – Esta é uma mensagem que vale tanto para a Europa como para a América Latina…
ORM – Também na Europa, com o Sínodo da Família, vimos tantas feridas, tantos sofrimentos, tantas famílias que fracassaram e querem começar uma nova aliança, mas deparam com uma quantidade de limites muito fortes, que os impedem de viver intensamente a sua fé. Alguns interpretaram mal o desejo que o Santo Padre de ir ao encontro de quem está longe: pensam que é hipotecar a doutrina.
Não, e ele já o disse muitas vezes. Na doutrina da Igreja há coisas que podem mudar e outras que não vão mudar nunca, porque vêm diretamente do Senhor Jesus Cristo. O facto de a doutrina existir não quer dizer, no entanto, que é melhor que aqueles que – por qualquer razão – não conseguem chegar a essa meta vão para o inferno ou para outro lugar. A pastoral é precisamente o cuidado das ovelhas e não só das que estão saudáveis, mas sobretudo das fracas, das doentes, das que estão em crise.
AE – Faz sentido contrapor doutrina à misericórdia?
ORM – O Papa tem dito que ninguém está fora da misericórdia e isso para mim abriu caminho para muitíssimas pessoas que estavam afastadas. Já São João Paulo II, na sua segunda encíclica, ‘Dives in misericordia’, expõe claramente todo o que é a doutrina (sobre a misericórdia), mas caiu no esquecimento.
Julgo que o atual Papa está a querer chamar a atenção, está a pedir que voltemos à misericórdia.
AE – O Jubileu vai servir para recordar esta mensagem?
ORM – Certamente. Em primeiro lugar, temos de perceber o que é um jubileu na Bíblia: era uma espécie de perdão geral. Perdoavam-se até as dívidas, daí surgiu essa grande iniciativa de São João Paulo II de pedir o perdão da dívida externa de muitos países, em que eu trabalhei muito, muito a fundo. Acredito que este foi um grande sinal.
O jubileu na Bíblia não se referia só às dívidas mas também à liberdade, à libertação dos escravos, por exemplo, dos que estavam submetidos, por diversas razões, a outras pessoas. O jubileu era quase como encontrar – como a palavra diz – júbilo, alegria, um ano de graça do Senhor.
Do meu ponto de vista, o que o Papa pensa é isto: ‘Olhem, há dois anos que estou a falar disto e ainda não o entendem”. Por isso, vem deixar bem clara a sua mensagem.
Um ano santo tem uma repercussão muito grande para os fiéis, dado que há uma série de benefícios espirituais que muitas pessoas ignoram. Neste ano, por certo, teremos de esforçar-nos mais nesta “pastoral dos afastados”, para aproximá-los, para ir até eles. Não por proselitismo, e isso é um outro ponto interessante: há dias lia um inquérito no qual se dizia que a Igreja Católica estava a perder fiéis. Depende da forma como olhamos: se vou ao Anuário Pontifício, a Igreja cresce todos os anos, também na América Latina, por causa dos novos batizados.
Os que vão embora – e digo-o com todo o respeito – é porque nunca estiveram. Foram batizados por tradição, mas nunca cresceram na Igreja porque não tiveram educação na fé, diziam-se católicos mas encontraram estas novas comunidades que são muito próximas, fisicamente: no bairro onde ainda não há uma paróquia, aparecem quatro ou cinco outras igrejas numa garagem.
O Papa pede que cheguemos também a estas pessoas, não por proselitismo, repito, mas para partilhar o que temos. Não vamos conquistar ninguém, mas queremos partilhar, para que eles aprendam o que é a sua Igreja, que não conheciam e que deixaram.
AE – Em Braga falou do ‘cristão na ação social’. A ação do cristão não deveria ser sempre social?
ORM – Efetivamente é assim, mas nalguns momentos pensava-se apenas em enfatizar a dimensão vertical: “Eu entendo-me com o meu Deus, os outros que se entendam com o seu”. Como vivemos numa sociedade individualista, especialmente nalgumas culturas, a dimensão comunitária é desvalorizada.
Por esse motivo, é tão necessário que a dimensão social entre na evangelização. Já o Papa Paulo VI na ‘Evangelii Nuntiandi’ dizia que a evangelização era incompleta sem a promoção humana. Este é o grande compromisso, sobretudo depois do Concílio Vaticano II. Em dezembro, vamos celebrar os 50 anos da ‘Gaudium et Spes’, documento profético que sacudiu a Igreja e que motivou uma maior organização da pastoral social.
A Igreja sempre se preocupou com a ação social, sublinhando sobretudo as obras de misericórdia, com base no Evangelho de São Mateus – ‘tive fome e deste-me se comer…’. Graças a Deus, hoje trabalha-se nas dimensões políticas, sociais, culturais e económicas. O Compêndio da Doutrina Social da Igrejas tem vastos capítulos a este respeito.
AE – Já em Fafe falou sobre a Justiça, que é um tema muito teológico…
ORM – Sim, é algo que tem muito a ver com a prática do Cristianismo, porque muitos reduzem a justiça à justiça distributiva, à justiça comutativa ou à justiça legal, esquecendo a dimensão social, que é precisamente um dos temas mais fortes na sociedade de hoje e em todos os países, também aqui em Portugal. Penso que vale a pena que a Igreja sublinhe, de modo especial com o laicado, a necessidade de um compromisso social mais exigente.
OC