Portugal assinala este Domingo o centenário do seu nascimento, em São Martinho de Anta, Sabrosa, Trás-os-Montes Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, nasceu em São Martinho de Anta, Sabrosa, Trás-os-Montes, no dia 12 de Agosto de 1907. Após uma fugaz passagem pelo Seminário de Lamego emigrou para o Brasil, em 1920. Tendo regressado a Portugal cinco anos depois, ou seja em 1925. Em 1933 concluiu o curso na Faculdade de Medicina de Coimbra e nesta cidade se radicou como clínico. A sua estreia, como escritor, data de 1928, com ANSIEDADE, logo seguida de RAMPA (1930), TRIBUTO (1931) e ABISMO (1932). Foi colaborador da “Presença”, mas dela se afastou com Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca, ciosos de preservar a sua liberdade estética (1930). Lança então com o segundo a efémera Revista “Sinal” e depois (1936) funda com Paulo Quintela, Lopes Graça, Álvaro Salema e Afonso Duarte o “Manifesto”. Em breve, porém, se isola de grupos e correntes, para seguir com intransigente independência caminhos próprios, nos domínios da poesia, da ficção narrativa e do teatro. Se nas primeiras obras encara a vida como luta contra o poder e as leis divinas, em O OUTRO LIVRO DE JOB (1936) exprime a sua revolta contra a injustiça que, para o homem, representa o pecado original. Já em LAMENTAÇÃO (1943) o dramatismo se atenua e em LIBERTAÇÃO (1944) a esperança renasce perante as gerações que se renovam, enquanto em NIHIL SIBI (1948) o poeta se exalta, porque dotado de uma missão que lhe permite desprezar os deuses, no CÂNTICO DO HOMEM (1950) comunica a sua indignação, ou o seu louvor do futuro desse mesmo homem, e nos POEMAS IBÉRICOS (1952) explana uma concepção da Ibéria moldada pela pobreza do solo, pela aventura da expansão, pela sujeição à carne e pela resistência à sua histórica cadeia de opressões. Mas é em momentos como os de ORFEU (1958) e ao longo dos 16 volumes do DIÁRIO (1941 – 1994), em prosa e verso, que a poesia de Miguel Torga atinge a mais íntima das densidades. Optando por uma confidência, embora não biográfica, da sua humanidade sofredora perante o sofrimento, Miguel Torga sente e cria poesia na observação da natureza, dos indivíduos e dos grupos sociais, enquanto, em sintonia com o seu militantismo democrático, faz reportagem, conta, critica ou tenta actuar perante os atropelos contra a dignidade, a liberdade e a justiça. Para isso mergulha na sua experiência de clínico, sempre em contacto com as dores físicas e morais do seu semelhante. A poesia nasce então da sua presença actuante na vida, das raízes telúricas e ancestrais de que o seu próprio ser se sustenta, da luta entre as limitações múltiplas que aprisionam o Homem e a revolta contra essas prisões, entre a consciente satisfação da sua capacidade criadora e o receio do seu desfasamento em relação aos outros. Daquele mesmo contacto com a vida e com a natureza arranca quase toda a sua obra de ficcionista, iniciada com PÃO ÁZIMO (1931), seguido de A TERCEIRA VOZ (1934), BICHOS (1940), CONTOS DA MONTANHA (1941), RUA (1942), SR. VENTURA (1943), NOVOS CONTOS DA MONTANHA (1944), VINDIMA (1945) e PEDRAS LAVRADAS (1945). O homem eleva-se aí como instintivo e enérgico protesto contra os padrões convencionais, consciente do seu poder de luta, movido pela coragem de viver o seu drama quotidiano entre o nascer e o morrer, haurindo a sua força no chão a que se agarra e na natureza em que se integra. Daí que os seus contos e novelas se enriqueçam daquela sua poesia feita de sensibilidade perante a alegria e o sofrimento, o sentido do divino, não expresso em profissões de fé confessional, mas patente em atitudes emocionais, por vezes com laivos de quase blasfémia, intenso dramatismo, fulgurações de estesia pagã ou delicados pormenores de simplicidade franciscana. E o dramaturgo é ainda poeta, quando procura temas nos ambientes populares (TERRA FIRME E MAR, 1941) quando confia ao poeta a profecia da revolução não realizada (SINFONIA, 1947), ou quando recria em termos modernos o fratrícidio de Caim ( PARAÍSO, 1949). Nascida do seu apego ancestral ao torrão português, em íntima inserção no conjunto ibérico, a obra de Miguel Torga adquire, assim, uma dimensão universal. Por outro lado, dominando uma técnica narrativa perfeita, manejando um vocabulário bebido nas fontes mais ricas do expressionismo do povo, sem, no entanto, cair no rebuscado ininteligível, plasmando a sua poética na sobriedade clássica e submetendo o seu estilo a um permanente trabalho de lima, Miguel Torga é formalmente um dos mais correctos escritores portugueses. Por isso a sua modernidade não se extinguirá com o tempo. A CRIAÇÃO DO POETA NO DIÁRIO PORTUGUÊS O DIÁRIO de Miguel Torga (16 volumes publicados), constitui, na expressão do próprio autor, o registo, em sínteses alegóricas, do quotidiano significativo (“A Criação do Mundo”, Quinto Dia, página 50), um “gráfico vivencial… abalado pelos estremecimentos pânicos de um tempo sísmico” (Diário XIII). Radiografia profunda de cinquenta anos de vida portuguesa, não é, contudo, a crónica dos seus dias, mas a “parábola deles”(Diário XI). Uma obra de arte é sempre, como observa Ortega e Gasset, “um troço da vida de um homem e da sua intimidade” (Miguel Torga, Poeta Ibérico). Por isso se põe desde logo o problema, e neste caso com mais acuidade, de saber se o DIÁRIO é uma autobiografia, à semelhança de A CRIAÇÃO DO MUNDO. De facto, as duas obras, como reconhece Clara Crabbé Rocha, “mantêm estreitas relações dialógicas e ocupam um lugar específico no espaço autobiográfico torguiano” (Espaço Autobiográfico em Miguel Torga). Tanto o DIÁRIO como a CRIAÇÃO representam a mesma “vivência íntima” do quotidiano, no dizer daquela autora. Porém, como um rio que se bifurca na nascente comum, para se reencontrar na foz, há uma distância escatológica entre as duas obras. Ambas dão testemunho do mesmo itinerário de angústia num tempo de inquietação. Ambas são “carne viva” onde se estampa o “plasma matricial da Pátria”. Mas enquanto na CRIAÇÃO o herói é o próprio autor, e a escrita assume uma natureza mais intimista, “numa dupla exigência de pudor e sinceridade”, em que o autor não se desnuda mas também não se oculta (O Sexto Dia), no DIÁRIO, o verdadeiro herói é, sobretudo, o povo e a Pátria. Torga assume aqui, em toda a plenitude, a condição portuguesa, no duplo sentido telúrico e humano. Quem lê o DIÁRIO, escreve Sofia de Melo Breyner, “percorre Portugal de lés a lés, o seu espaço telúrico, humano, e o espaço histórico e cultural” (Miguel Torga, Poeta Ibérico). No entanto, o DIÁRIO é também um repositório de vivências íntimas do inquieto mundo torguiano, “trâmites aventurosos e dramáticos da corrida solidária, contra-relógio, dum poeta obstinado”(Diário X), “crucificação espiritual de um homem insubmisso” (Diário VII). Contudo, o DIÁRIO excede, no meu entender, o espaço autobiográfico do autor. Não é a sua imagem estampada que vemos, numa espécie de santo-sudário. Não é o seu retrato, mas a sua moldura. O retrato que nele se desenha é o do povo e da condição portuguesa. Torga assume, fiel e medularmente, essa condição, como autêntico “selo de origem, impresso no barro da carne”. Por isso, o DIÁRIO é o auto-retrato de Portugal. Como escreveu Jacinto Prado Coelho “Torga não é apenas a expressão de uma paisagem ou de uma alma colectiva: a sua obra é ele e a Natureza; ele e Portugal, um Portugal que o fez, mas que em parte ele inventou” (Miguel Torga, Poeta Ibérico). Eis, segundo cremos, a chave-mestra, o fulcro desta obra fundamental da literatura portuguesa, que representa, no dizer de Carlos Reis, “notável contributo para o conhecimento da mundividência dum escritor incapaz de viver divorciado do que o cerca” (Homenagem a Miguel Torga). Ora, o que cerca o escritor, é Portugal, “um Portugal com oito séculos de existência e que não encontrou ainda a sua identidade nacional”(Diário XII). É essa identidade que Torga procura, e encontra, no apelo constante das suas (nossas) raízes profundas. A realidade de um povo “timbrada na carne e no espírito como uma tatuagem dignificadora” (Fogo Preso). É por isso que Torga visita e revisita todos os recantos da Pátria, numa procura insofrida do núcleo essencial da matriz lusitana. “Vi Portugal sozinho, sem guias, sem interlocutores, a ouvir apenas nas fragas, nos matagais, nos restolhos, nas areias e nas calçadas o eco dos meus próprios passos” (Diário XI). Não houve aceno de monte ou de planície a que não respondesse. “Subi todas as serras e calcorreei todos os vales desta pátria” (Diário VIII). Torga palmilhou o País, não por nacionalismo, como ele próprio reconhece, mas por uma “funda necessidade cultural”. “A realidade telúrica de um país descoberta pelos métodos de um almocreve”….. pois é “com o seu próprio corpo que o homem mede o berço e o caixão”(Diário V). É por isso que Torga pode reconhecer qualquer lugar português por coisas aparentemente tão simples, como tactear a terra que pisa ou provar o tempero da carne de porco. A derme e a epiderme da mesma realidade, desvendada pelo sentido físico e metafísico, pois se a terra é a face visível, o tempero é “assinatura inconfundível que identifica a região e o habitante dela. A pimenta e o cravo das nossas andanças marítimas, e o vinho, o alho e o louro da nossa rotina telúrica, depois de complicadas alquimias, passaram de meros condimentos a puras essências de sabedoria” (Diário VII). A ligação medular de Torga ao chão nativo, a procura quase obsessiva e mítica das raízes da lusitanidade, da nossa cultura ancestral, constituem, na opinião de Claire Cayron, tradutora francesa do DIÁRIO (En Franchise Interieure), o tema principal da obra. Essa busca, esse tão falado e, por vezes, mal entendido telurismo torguiano é, afinal, se bem compreendemos o pensamento do escritor, condição essencial para construir o futuro. Ao olhar o passado, é o porvir que Torga perscruta. “O homem escreve não só o instante em que se contempla num espelho, mas também a saudade doutras imagens passadas de que se recorda, e a certeza doutras imagens futuras que adivinha” (Diário V). Em recente artigo do “Jornal de Letras”, Maria Lúcia Lepecki considera a “Terra” o conteúdo preferencial do DIÁRIO entendida “como Tellus, a mãe primacial, a primeira fonte da vida”, a Terra-Mater, ou Mátria, com a qual o escritor realiza um verdadeiro “encontro eucarístico”. O DIÁRIO é, assim, a “ponte da sua comunhão com o sofrimento do seu povo, com o que o seu povo foi, é e poderá vir a ser. Com qualidades e defeitos, com dramáticas oscilações ao longo da História, o povo português é a última e definitiva substância do ritual eucarístico de Torga”. Também Fernão de Magalhães Gonçalves, um dos mais lúcidos analistas de Torga, fala de um “culto cósmico” do poeta, “de uma visão do mundo transparente à beleza, à eternidade, à transcendência e à imanência do sagrado. Como um toque de super-realidade que atravessa a estrutura da realidade. Uma sacralidade que a natureza contém, mas não detém. Que esta exprime, porque aquela a trespassa e ultrapassa” (Sete Meditações sobre Miguel Torga). Vem a propósito citar aqui palavras do Prof. Ferrer Correia na abertura da Sessão Solene promovida pela Universidade de Coimbra, comemorativa dos cinquenta anos de actividade literária de Miguel Torga: “A ligação do artista com a terra, com as forças telúricas, é uma constante da obra de Miguel Torga. Mas a terra para o escritor não é apenas, nem sequer principalmente, uma entidade geológica ou uma abstracção da paisagem. Para Miguel Torga, a terra é uma grandeza, um tempo fisico e moral, uma realidade elementar a que não é estranha a história e o destino do povo. Como o gigante indomável da mitologia recobrava forças cada vez que tocava o solo” (Homenagem a Miguel Torga). O ENIGMA DE DEUS NA VIDA TORGUIANA Deus é o grande e último mistério para a consciência atormentada de Miguel Torga. Todos os porquês originantes, todos os enigmas existenciais e todas as perguntas que o homem coloca ao seu ser e existir são alíneas da problemática geral que o nome de Deus encerra. Como interpretar a sua esperança senão pela vontade indómita de encontrar uma via de saída para os seus enigmas, que só a fé em Deus pode assegurar? Como penetrar na obsessão do seu conceito sobre a morte, senão a partir das trevas que lhe advém pelo facto de não se decidir por um acto de fé convicto no Deus da Revelação? Sim, Deus é o grande mistério de Torga. De tal maneira é verdade que este autor só raramente tem coragem de olhar olhos nos olhos o fulcro da sua solidão, esperança e morte. De um modo geral, Deus não é alguém com quem dialogue em colóquio directo, antes, permanece à volta da razão última dos seus problemas num pudor retraído de quem não sente coragem de entrar no SANCTUS SANCTORUM. (Miguel Torga: Na Rota de um Peregrino) O peregrinar dos seus dias e as sendas traçadas no sentido de desvendar os seus horizontes por que anseia estão condicionados pelas suas origens, pela sua forma e pela sua geração, como é óbvio. Miguel Torga não se libertará do que de negativo estas influências possam exercer sobre si. Podemos dizer que são cumes muito elevados e densos que tolhem ao poeta a possibilidade de habitar em vales férteis. O Seminário, a emigração precoce, as mortes de familiares, o positivismo latente e o período político atravessado são nós evidentes da rede que envolve o seu quotidiano diário. Miguel Torga nasce num ambiente marcadamente católico. Recebe a catequese, faz a primeira comunhão, entra mesmo no Seminário Menor. Podemos afirmar, que o primeiro conceito de Deus e os primeiros assomos do religioso são de matriz declaradamente católica. Será sempre esta experiência inicial, o barómetro para o seu turbulento caminho. E é com ela, que ele vai medir forças ao longo destes anos. Logo no primeiro volume do seu DIÁRIO reconhece que este ligame com a fé cristã foi passando, e secando com o passar dos tempos. Mas mais do que libertação, nesta secura, experimentou uma maior desilusão, pois, nada até agora substitui a fé e a comunidade eclesial das quais se afastou. “Isto de religião está cada vez pior dentro de mim. Depois de uns arrancos fundos e angustiados, a coisa foi secando até chegar a esta mirra mística, que já não há Jordão teológico capaz de vivificar. Mas quanto mais pobre estou desse conteúdo humano, mais cheio me sinto de desespero. O que eu dava para me levantar cedo esta manhã, ir à missa, e voltar da Igreja com a cara que trazia o meu vizinho”. (Diário I) Luis Filipe Santos