Migrações, uma década em revista

O antigo Comissário Europeu António Vitorino considera que se deve afastar cenário de regresso em massa dos imigrantes, em Portugal, e sublinha papel da Igreja Católica, no terreno

Agência ECCLESIA (AE)– Olhando para esta década do terceiro milénio os fluxos migratórios alteraram-se significativamente?

António Vitorino (AV) – Eu penso que há dados de continuidade e dados de mudança. Os dados de continuidade são que a pressão migratória se manteve mas, manifestamente a partir de 2008, a partir da crise financeira global, verifica-se uma diminuição dessa pressão migratória, quer dos fluxos legais quer dos fluxos ilegais. Isso corresponde aliás a uma das características dos fluxos migratórios no mundo contemporâneo. Eles são extremamente sensíveis às oportunidades de trabalho e quando há, naturalmente, uma retração da oferta de trabalho nos países mais desenvolvidos os fluxos migratórios também tendem a compreender esses sinais e retraírem-se.

Há um elemento muito importante de compreensão também. Embora haja essa retração, isso não significa que haja um retorno em massa, isto é, aqueles emigrantes que estão nos países desenvolvidos, designadamente no caso do continente europeu, nos Estados Unidos da América e no Canadá, embora atingidos muitas vezes em primeira linha pelo impacto negativo pela crise financeira não retornam ao país de origem. Isto é, tentam usar as suas reservas, a solidariedade familiar e da comunidade onde se inserem para passarem os períodos de crise à espera de dias melhores.

 

AE – Também no caso português?

AV – Sim, também no caso português. Houve uma retração nos fluxos migratórios, talvez aqui haja algumas destrinças a fazer, a comunidade brasileira continua a ser a mais importante, o ritmo de aumento manteve-se durante os primeiros tempos da crise e agora terá abrandado um pouco mais. Não houve contudo um retorno em massa.

 

AE – Que indexação têm estes fluxos migratórios à resolução dos problemas demográficos?

AV – É uma ilusão pensar que a imigração é a solução do envelhecimento demográfico que é um padrão muito preocupante em todo o continente europeu, e nalguns países em particular, entre os quais o português. É um elemento que pode contribuir para o rejuvenescimento da população mas não resolve…

Não é possível criar essa ilusão que esse rejuvenescimento se resume ao aumento de fluxos migratórios, se vir os censos, cujos números preliminares foram agora divulgados, chega-se à conclusão de que o aumento líquido da população portuguesa é, em quase 90%, fruto da imigração. O que significa que há um problema para além do fluxo migratório que é o próprio comportamento da sociedade portuguesa, no que diz respeito à diminuição da taxa de natalidade. E, portanto, uma política de rejuvenescimento da população, primeiro não produz efeito “ao virar da esquina”, estamos sempre a trabalhar em ciclos longos; em segundo lugar, tem a ver com os incentivos que são dados para que as pessoas possam ter filhos e garantir condições económicas e sociais para a educação desses filhos; em terceiro lugar, tem a ver com o combate cultural, muito da quebra da natalidade resulta do aumento do egoísmo e do fechamento dos agregados familiares e da desagregação de alguns agregados.

A questão do rejuvenescimento da população também passa pela alteração dos padrões culturais das pessoas: menos egoísmo, menos consumismo, maior realização pessoal na criação de uma família e na existência de crianças nas famílias.

 

AE – Voltemos a esse problema dos fluxos migratórios, mesmo do caso português.É assim tão significativa a saída de portugueses, nomeadamente para a Europa, nos últimos anos?

AV – Sim, tem-se verificado um aumento continuado. Eu tenho nesta matéria uma posição algo particular, na medida em que normalmente não tenho uma visão negativa desses movimentos, pelo contrário.

Posso mesmo dar-lhe o meu próprio exemplo, eu incentivo os meus filhos a que parte da sua formação académica e profissional seja feita no estrangeiro porque esse é o mundo em que eles vão viver. É preciso distinguir muito claramente o que é a emigração derivada das condições económicas, que era a esmagadora maioria dos emigrantes das década de 60 em Portugal, do que é hoje que, tendo uma base económica, designadamente a falta de oportunidades de trabalho para jovens licenciados em Portugal, gera um movimento circular porque nos meus contatos com os emigrantes portugueses, designadamente os qualificados que saem, é de que eles saem e isso vai enriquecer-lhes a sua vida profissional mas eles mantêm todos a firme convicção de que na primeira oportunidade regressam.

Portanto há uma diferença substancial no padrão da emigração hoje com aquela que era há 30 anos atrás. Hoje a emigração é de quadros muito mais qualificados o que ajuda também a fazer uma ideia diferente e uma imagem diferente do país no estrangeiro. São pessoas que vão e que se valorizam a elas próprias e que valorizam os países onde vão estar a trabalhar e que têm e mantêm uma ligação de retorno a Portugal.

Em resumo, eu não creio que as pessoas devam emigrar porque sim, mas há um aumento de emigração que temos de ver como uma oportunidade e não como uma fatalidade.   

 

AE – Em todo o caso também há os que emigram porque precisam…

AV – Certo. Continua a haver emigração económica mas essa há desde sempre… Repare que houve uma altura que se calculava que cerca de 120 mil portugueses estariam a trabalhar na construção civil em Espanha.  Foi uma altura em que houve um grande boom em Espanha e uma retração do investimento em obras públicas e em construção civil em Portugal.

Esses trabalhadores não eram qualificados e muitas vezes iam fazer trabalhos extremamente árduos em Espanha, que não os fariam em Portugal, onde esses trabalhos são destinados aos imigrantes de países terceiros.

 

AE – Agora cada vez menos, talvez…

AV – Creio que o que se está a passar é o regresso dessas pessoas por razões da crise económica também em Espanha. Muitos deles hoje aceitam trabalhos em Portugal, particularmente duros, que há uns anos não aceitariam…

Nesse sentido, não nego que em certo setores da atividade económica se gera uma concorrência aos mesmos postos de trabalho entre portugueses e imigrantes de países terceiros.

 

AE – Gera também uma maior tensão social?

AV – Não gera no sentido de dizer que tenhamos um problema generalizado nessa matéria, mas um potencial desse tipo de conflitos existe. Portanto, maior é a responsabilidade das autoridades públicas, dos serviços sociais, mas também da sociedade civil e das próprias comunidades de emigrantes nas políticas de integração da sociedade portuguesa nestes tempos de crise onde os fatores de atrito são potenciados.

 

AE – Os que já cá estão integrados e veem agora esta situação poderão ver um fim antecipado e inesperado?

AV – Eu espero que não, vamos ver. Sejamos extremamente claros, há maior tensão, pode haver concorrência direta aos postos de trabalho entre imigrantes e portugueses e isso tem de ser visto com muito cuidado e muita ponderação.

Convém recordar aos portugueses que esses imigrantes que estiveram a trabalhar em Portugal na última década contribuíram com os seus impostos e se hoje estão em risco social têm direito à proteção social em condições equiparadas à dos cidadãos portugueses. Portanto, eu acho que o Governo anterior tomou uma decisão acertada que foi de reduzir as exigências da prova de meios para efeitos de renovação das autorizações de permanência no território nacional tendo em linha de conta os impactos da crise nas comunidades de emigrantes e o valor da solidariedade não se distingue nem em função da território de origem, nem da nacionalidade nem cor da pele, é um valor de solidariedade humana.

 

AE – Pelo que se percebe será também uma tendência do atual Governo?

AV – Ainda é cedo para julgar, mas eu acho que sim. Portugal é um país que tem a felicidade, e sublinho bem esta expressão, a felicidade de não fazer da política de imigração uma arma de conflito político interno. E isso é um fator distintivo de Portugal em relação a muitos países europeus onde a imigração é um assunto de controvérsia interna e mais, essa controvérsia é um local de cultura onde medra a xenofobia, o racismo e a discriminação. Portanto eu espero que essa característica se mantenha no atual Governo.

 

AE – Qual é o papel que as associações e ordens religiosas têm na integração e no diálogo, seja pessoal com os imigrantes seja com as instituições que determinam as políticas de imigração?

AV – Nós temos também a felicidade de ter uma sociedade civil no seu conjunto e com especial destaque para a Igreja Católica e às instituições ligada a ela, que atribui uma relevância à questão da integração dos imigrantes, não só teórica ou retórica, mas estando presente no terreno.

Isso é referenciado às associações patronais, aos sindicatos que têm um papel muito importante, às autarquias locais e toda a sua rede e à própria Igreja Católica, na plataforma de integração aos imigrantes que eu coordeno na Fundação Calouste Gulbenkian e que congrega todas as fundações portuguesas.

O papel desempenhado pela Obra Católica tem sido muito importante, não apenas do ponto de vista de proteção social mas também do ponto de vista cultural, do ponto de vista do diálogo pela tolerância, diversidade e diálogo inter-religioso, porque é um elemento de integração dos imigrantes. Reconhecemos que muitos deles não têm a mesma religião que a maioria dos portugueses professa.

Este diálogo tem encontrado sempre na Obra Católica das Migrações não apenas um defensor mas também um ator ativo de promoção dessa tolerância, desse diálogo e dessa pluralidade.

PTE/SN/OC

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Agência ECCLESIA

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