No início deste Novo Milénio assistimos à grande intensificação e complexidade dos movimentos migratórios. Em alguns lugares de forma mais mediática, mas noutros de forma mais silenciosa. São as novas mobilidades geográficas, culturais e económicas a mudar o mundo!
As migrações humanas internacionais são um dos maiores desafios civilizacionais colocados às nossas sociedades – portuguesa, europeia e mundial – para a felicidade de pessoas e povos. A mobilidade humana presente em todas as latitudes e continentes apresenta-se como um dos maiores “sinais dos tempos” a decifrar com bom senso e a acolher com inteligência para o diálogo e paz entre as religiões e, particularmente, da Igreja católica com outras tradições espirituais pós-modernas.
O diálogo, o confronto, o encontro e, às vezes, também a fusão – expressa em ritos e hierarquias – foram sempre aspectos da dimensão incarnatória inerente ao próprio cristianismo. As origens às quais voltámos com o II Concílio do Vaticano são para nós a fonte segura e inspiradora para a nova pedagogia exigida pelas próprias mutações culturais e globais em curso nas nossas paróquias, dioceses, congregações e movimentos sempre mais multiculturais e constituídos por grupos específicos de pessoas.
Em vésperas da 37.ª Semana Nacional de Migrações, e inspirado pela mensagem que o Papa Bento XVI escreveu para a Jornada Mundial do Migrante e Refugiado 2009, onde Paulo é apontando como migrante do Evangelho e missionário sem fronteiras, convém pensar ao dom que são as migrações humanas e novas mobilidades interiores para a nossa fidelidade à missão global da Igreja.
Pensemos em Jesus, Maria, Paulo, Timóteo, Tito, nossos antepassados na busca de Deus e prática da fraternidade, só para citar as colunas do primeiro século desta Era. Jesus que ousou contactar a cultura “impura” dos samaritanos e das várias categorias de estrangeiros e excluídos da sua própria terra pela lei de Moisés, elogiando a fé e caridade desses irmãos; Maria, mãe indefesa e mulher perseguida que, para salvar seu filho das garras do romano opressor, foi forçada a exilar-se no Egipto: pátria de falsos deuses e faraós opressores; Paulo que, sem renunciar à sua identidade, sempre reivindicou suas múltiplas pertenças culturais: religioso judeu (fariseu), cidadão romano e poliglota (aramaico, judeu e grego); Timóteo, gentio circuncidado adulto, filho de mãe judia e pai grego; por fim, Tito, cristão de cultura helenista e missionário ousado que falava sem medo nas sinagogas dos judeus e nos areópagos dos gentios das comunidades da diáspora, mais tolerantes e interculturais que as comunidades da Judeia porque constituídas por gentes diferentes no mesmo território.
A Igreja em Portugal e na Europa, continua muito empenhada a nível da cidadania e direitos humanos dos emigrantes, imigrantes, refugiados e outras categorias de itinerantes (povo cigano e gentes do mar). Tem feito ouvir, em diferenciados fóruns e de vários modos a sua voz profética face às actuais legislações europeias minimalistas e viciadas pelo medo e pela segurança. Legislações repressivas que não facilitando a admissão através de canais ágeis e legais lançam muitos candidatos à imigração nas mãos de traficantes e terríveis intermediários. Leis que empurram imigrantes para a ilegalidade deixando-os ao deus-dará no clandestino mar da esperança em que se tornou o mediterrâneo e, cada vez mais, também outras ilhas e costas atlânticas, pacíficas e índicas.
As religiões, todas elas, são hoje chamadas – por inspiração quase divina – a assumir nos seus templos, hierarquias, pregações, missões, procissões, parábolas e pedagogias aquela evangélica realidade que criou fortes e violentas tensões na igreja primitiva, mas que foi a chave para abrir as portas do Reino a todos os povos. Aquilo que hoje se dá pelo nome de interculturalidade.
Mais do que a proclamação desta realidade em acto há já perto de uma década – através de políticas educativas e estudos especializados – há que subtraí-la à ideologia e à discussão académica para atingir o que ela, de facto, é na sua essência: não uma ideia, mas uma acção. Não uma ideologia, mas uma prática. Não um conceito, mas um movimento humano: um afecto! Não uma intenção moral, mas a razão de ser da própria religião transcendente que liberta o homem para o divinizar. Através de uma relação construtiva e libertadora com o Outro por excelência – Deus – para que a fraternidade seja possível e a convivência entre diferentes revele aos homens que o humanismo e a fraternidade cristã são a alma universal de cada ser humano, filiado ou não numa religião, discípulo ou não de uma tradição ou filosofia.
É aqui que surge hoje a grande oportunidade de consciencialização e acompanhamento diferenciado que marca as várias pastorais específicas – entre as quais a migratória, a militar, a da saúde, entre outras – que a Igreja vem desenvolvendo ao longo da sua história solidária. Com uma linguagem própria, com estruturas adaptadas, missionários preparados e uma evangelização “situada” para um anúncio do Evangelho marcado pela linguagem compreensível, simbologia perceptível, palavras simples e proximidade salvífica.
Só regressando às raízes da interculturalidade que marca, desde o início, a vida e missão da Igreja nós seremos apóstolos ousados e atrevidos como Paulo de Tarso. É preciso redescobrir que as múltiplas pertenças que habitam a nossa alma são a mais-valia necessária para a criatividade exigida pela “nova evangelização” que se apregoa e que queremos ver actuada nas nossas comunidades e pastorais.
Oxalá, a nova encíclica do Santo Padre “Caritas in veritate”, lida e meditada em comunidade, aproxime mais a Igreja do mundo em acelerada mutação cultural, complexa mobilidade religiosa e mobilize os movimentos e plataformas cívicas católicas para uma presença mais pública no debate da Sociedade Civil ao redor das questões sociais, económicas, ambientais e migratórias.
Pe. Rui Pedro, Missionário Scalabriniano