Migrações: «Se trouxerem as pessoas sem ter condições, é óbvio que caem na marginalização» – Tânia Moreira

Depois de ter estado numa iniciativa em que se falou da problemática dos imigrantes, do seu acesso à saúde e dos seus pedidos de residência temporária, a coordenadora do Secretariado da Pastoral das Migrações de Setúbal é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (RR) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

Começo por esta intenção de oração do Papa, para o mês de junho, lembrando aqueles que fogem da sua terra. Ela é novamente uma denúncia de Francisco sobre a forma como se acolhem ou não os migrantes. E o que eu lhe pergunto é se a nossa maneira, aqui com as dificuldades que surgem em Portugal, se também não se estão a erguer muros que afastam os migrantes do país?

Pois, a problemática é uma constante. O ano passado, em 2023, com a mensagem do Papa Francisco, fomos lembrados, desta problemática. O tema do Dia era: “Livres de escolher se migrar ou permanecer”…. E aqui o que nós temos são pessoas que escolhem, algumas por uma necessidade maior, outras porque simplesmente decidem tentar uma vida melhor, com outras oportunidades, em termos de formação, em termos de trabalho. E neste momento são mais os muros do que propriamente as pontes. Queremos construir pontes, não muros, mas neste momento há mais muros do que pontes.

 

Fala da AIMA, fala das filas de espera para se obter um visto, fala da questão da residência?

Sim, sim, sim. Essa questão, neste momento, o feedback que eu tenho do terreno é que a situação está muito, muito pior.  Ainda durante a semana passada, ontem no evento, há relatos, as pessoas estão há meses, quando digo há meses, há mais de um ano à espera de uma resposta, não conseguem estabelecer contato com ninguém para esclarecer a situação, qual é o ponto de situação e as pessoas simplesmente ficam penduradas, com as vidas penduradas porque não tendo a residência, não tendo os documentos, afeta em vários pontos. uns querem continuar a estudar e não conseguem, outros querem adquirir uma casa, não podem pedir um empréstimo bancário. Quer dizer, há inúmeras situações que ficam aqui comprometidas por causa disto.

 

E há outras dificuldades a nível do acolhimento que se tem manifestado, como por exemplo, aquilo que podemos chamar os alugueres selvagens a migrantes?

Sim. A questão do aluguer e da falta de habitação. As pessoas queixam-se que veem um anúncio, fazem um telefonema, a pessoa apercebe-se, ah é brasileiro, tem um sotaque diferente, imediatamente o contacto é interrompido e já não dão essa oportunidade. E as pessoas ficam realmente ali em situações em que não conseguem e que não compreendem também, não é? Porque as pessoas vêm a bem, querem estar cá e sentem-se, muitas surpreendidas, e dizem, mas o que é isto? Porquê que não me acolhem? Eu não sou diferente de ninguém, eu não sou má pessoa.

 

Mas isso é xenofobia mesmo?

Eu acho que temos de chamar as coisas pelo nome, não é? E em alguns casos só pode ser, porque o que eu vejo é que mesmo a postura das pessoas é completamente diferente com os migrantes que vêm do Norte, com um francês, com um belga, como um alemão, como um suíço, do que alguém que vem da África e qual é a diferença? É a cor da pele? É o nível de riqueza ou de pobreza? Quer dizer, o que é que estamos aqui a falar? Porque é que nós acolhemos melhor os ricos, não é? Os ricos, os caucasianos, porque é que acolhemos melhor esses e não acolhemos tão bem os outros?

 

A sobrelotação dos espaços é também uma realidade, ainda na última semana a Renascença divulgou uma reportagem em que se prova essa realidade num hostel do Porto. Não faltará tão bem aqui mais e melhor fiscalização?

Sim, sim, também e até há um caso, há uns tempos em que houve uma reportagem de uma situação também no Montijo, em que havia ali alguém que construía uns anexos e aquilo estava completamente sobrelotado. Agora é assim, toda a gente sabe onde é que eles estão, não é? Esses migrantes estão, as autarquias sabem, as juntas de freguesia sabem e porquê que não se faz nada sobre isso, não é? Porquê que se deixa um senhorio fazer esse tipo de arrendamentos e de alugueres sem haver fiscalização?

 

Mas essa pergunta temos de a fazer, porquê que se deixa fazer isso?

Pois, porque realmente há uma necessidade, porque quem vem sujeita-se a esta situação.  Há uns dois, três anos havia aqui no Concelho, não sei se ainda há, uma situação que era um bispo da Igreja Universal que transformou umas lojas e umas garagens em alojamento. Aquilo tinha uns beliches umas camas e aquilo tinha umas condições medonhas. Eu fui lá uma vez distribuir uns alimentos a uma família e quando vi aquilo a minha primeira reação foi, tenho de denunciar esta situação, isto não pode ficar assim. Mas depois parei e pensei, mas se eu denunciar esta situação hoje e alguém vier cá e fechar isso, para onde é que vão estas pessoas que estão aqui? Se não houver resposta, se nós não dermos resposta, e depois agora vou mais além, se nós como Igreja também não ajudarmos a dar resposta a estas questões; se as autarquias, se a sociedade em geral não dá resposta, as pessoas também vão para onde? Aqui também é a questão, não é? É mau eles fazerem este tipo de alugueres, mas depois para onde é que as pessoas vão?

 

Sim, entendo a questão. Tenho de lhe fazer outra que tem a ver com notícias que não há muito tempo indignavam o país sobre os casos de exploração de migrantes, falou-se sobretudo de Odemira e de outras regiões do Alentejo. Teme que o problema possa ganhar uma dimensão maior agora face a estes anunciados investimentos em Portugal que vão precisar de mais mão de obra?

Sim, porque Odemira que aconteceu em tempo de Covid toda a gente ficou a saber o que lá se passava, o problema foi expostos; mas a minha questão é: tudo continua igual? Provavelmente sim. Temos casos no Montijo, em Pegões, temos esses casos todos assim. As pessoas sabem, os políticos e quem de direito que deve resolver isso, sabe que a situação está assim e se vão fazer mais investimentos, se vão trazer mais mão de obra, e se ninguém se preocupa… Eu não sei de quem é que é a responsabilidade, se é dos investidores ou se é do Governo, mas é preciso criar condições para os trabalhadores que trazem, não é? E então, se lhes derem as condições, muito bem, se trouxerem as pessoas sem terem condições, é óbvio que as pessoas depois caem nessa marginalização. Porque não há como conseguirem habitação de outra forma e outras condições.

 

É então, portanto, necessário prevenir a montante…

Sim, eu acho que tem que se prevenir. Há uns tempos também tive conhecimento, por exemplo, de uma situação em Setúbal. Em Setúbal, uma empresa de transportes ganhou um concurso, faltavam motoristas, e foi buscar motoristas a Cabo Verde, vieram para aí uns 70 homens. E a empresa garantiu o alojamento, deu as condições, instalou-os, até ali que eles diziam que estavam muito satisfeitos, tinham boas instalações, tinham uma boa casa, tinham tudo e condições para trazer a família. Isto sim é um exemplo de sucesso, não é? Criam-se as condições, trazem-se as pessoas e decorre tudo bem dentro da normalidade. Não há condições, as pessoas chegam aqui, muitas vezes, se calhar, até pensando que é fácil, não conhecem a realidade e podem achar que é fácil ter um alojamento e tudo, e depois veem que afinal não é assim tão fácil.

 

O Papa fala também de fantasmas. Esses fantasmas estão a ganhar corpo no nosso país, em particular em alguns discursos políticos?

Sim, claramente. O que mais me amedronta e o que mais me surpreende é como é que esses fantasmas também conseguem entrar dentro das nossas comunidades, dentro da Igreja, porque a partir do momento que nós temos pessoas crentes, praticantes, que depois se deixam ir em alguns discursos e aceitam certas ideias que são completamente contrárias àquilo que Jesus Cristo prega, os fantasmas existem e nós só temos de enfrentá-los e lutar para encará-los e resolver as situações, porque senão isso vai ser crescente.

 

Esta mensagem do Papa, aliás, diz claramente que os cristãos não podem partilhar esta mentalidade de exclusão. Como diz, é uma mensagem que nem sempre tem passado?

Não, é uma mensagem que nem sempre tem passado. Nós temos as ferramentas dentro da Igreja. Nós temos o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, em que somos chamados, nem que seja naquele dia ou principalmente naquele dia, há sempre uma mensagem, somos chamados a refletir sobre isso. Somos chamados a acolher e temos esta responsabilidade, não é? Em 2018 o Papa lançou-nos os quatro verbos, acolher, proteger, promover e entregar, que é uma responsabilidade de todos nós. Nós como Igreja então, quer dizer, nem sequer devia estar em consideração que a pessoa não tentasse fazer isso, junto do irmão. Agora, tudo o resto condiciona bastante depois a mentalidade das pessoas.

 

O bispo de Setúbal, D. Américo Aguiar, lamentou que os migrantes estejam a ser vítimas de jogos partidários. No terreno, no trabalho diário com os migrantes, sentem que eles se apercebem desta realidade descrita pelo cardeal?

Não sei se eles sentem… no outro dia falava com uma cidadã brasileira que teve dificuldades no acesso ao centro de saúde. Quando lhe perguntei: “mas por que é que achas que isto acontece?”, não sei se levam isto para a questão política, se calhar a maior parte deles nem sequer têm esse entendimento, não percebem o porquê desta postura das pessoas perante eles. Ela dizia-me assim: “ah mas isto, da forma como trataram, foi uma grande falta de educação”. Quer dizer, a boa educação não conhece cor, não conhece raça, não conhece língua, a forma como nós acolhemos, tem de ser independente de tudo, relativamente à outra pessoa.

Alguns eu sei que sim, que conseguem perceber esta dinâmica e na altura das eleições falei com alguns que diziam: “ah pois, se certo partido ganha terreno, as coisas vão ficar pior para nós”, mas outros não têm esta noção.

 

Falando de eleições, a Europa vai agora a eleições para o Parlamento. A União Europeia aprovou recentemente um pacto para as migrações, que recebeu críticas, fortes críticas de alguns setores da Igreja, como o Serviço Jesuíta aos Refugiados, que falou num “dia triste para os valores europeus”. Também pensa que se estão a tratar os migrantes como criminosos?

A imagem acaba por passar sempre, mas, voltando atrás, a questão é mais profunda do que isto, porque ninguém olha para os migrantes que vêm do norte como criminosos, mas olha para aqueles que vêm do sul, da África, Brasil e tudo como criminosos. É esta a imagem que passa e agora os políticos pegam nesta questão e dizem: “nós estamos a fazer tudo para manter os países mais seguros, por isso é que não deixamos entrar as pessoas”. Pegam por aí, quando há estudos e há provas de que o facto de as pessoas virem para cá não faz com que a criminalidade aumente, a maior parte das pessoas são pessoas de bem, as pessoas não vêm para cá para causar distúrbios, vêm simplesmente para tentar ter uma vida melhor e vêm em paz. Isso é uma falsa questão e é uma ideia que os políticos lançam, para depois aparecerem como salvadores da pátria… “o país está muito pior, há muita insegurança, mas nós vamos dar conta disto e vamos salvar”… quando na realidade, não é pelo facto de as pessoas estarem cá que a criminalidade está a aumentar, não é que os migrantes sejam pessoas de mal, que venham para cá para cometer crimes, para roubar, para fazer o que é que seja, a grande maioria são pessoas de bem. Há sempre exceções, que entra alguém que venha com piores intenções, mas a regra não é essa…

 

Ainda sobre as eleições europeias, há quem antecipe um aumento da representação de forças extremistas no Parlamento Europeu, o que pode fazer aumentar a dificuldade dos imigrantes. A Tânia Partilha deste receio?

Sim, porque já temos visto nos últimos tempos que a direita tem ganho cada vez mais força, portanto acredito que isso vai continuar. Vimos o resultado das eleições em Portugal, vemos nos outros países, vemos Itália, a própria situação do ‘Brexit’ que foi um movimento anti-imigração, toda a conjetura da Europa leva a que o receio seja grande, porque eu acho que isto vai piorar bastante.

 

Vamos falar agora um pouco sobre o trabalho do Secretariado Diocesanos das Migrações de Setúbal, que tem agora a oportunidade de coordenar. Que dificuldades têm detetado no terreno, quais são as mais difíceis de superar para os migrantes?

Neste momento, os migrantes têm dois grandes problemas, que é a documentação e a habitação. Trabalham, a grande maioria consegue, com melhores ou piores condições, porque eles vêm sujeitos a tudo, não escolhem… tudo o que aparece, eles fazem, são pessoas de boa vontade, com genica, sem preguiça, como eu costumo dizer, não têm preguiça, mas realmente a habitação é um problema muito grande. Temos muitas famílias a viver num quarto, de quatro pessoas, cinco pessoas, a partilharem uma casa e que são 20 lá dentro ou assim.

O facto de não terem documentação também atrapalha: um casal pediu um empréstimo, já está a reunir condições monetárias para conseguir comprar uma casa, mas a mãe de família tem a residência caducada, apesar de ter sido prorrogada até junho… no banco dizem que está caducada, não há nada a fazer. Estas dificuldades que as pessoas têm enfrentado, neste momento, é o pior.

 

Como é que tem sido este desafio que a diocese lhe lançou, como era a sua relação com esta pastoral?

Eu sou da Paróquia da Amora, na Diocese de Setúbal, no Concelho do Seixal. Nós temos, há mais de 50 anos, os missionários Scalabrinianos, responsáveis por esta paróquia. Eu nasci aqui, cresci aqui, sou filha de pais cabo-verdianos, senti na pele, durante a minha vida, algumas destas questões relativas à imigração; neste momento sou também leiga scalabriniana, coordeno o grupo de leigos scalabrinianos da paróquia, sempre tivemos uma relação especial no acolhimento, na atenção aos migrantes, com o carisma de São João Batista Scalabrini. Este convite do bispo chegou por essa via, tendo conhecimento da realidade aqui da paróquia, fez-lhe sentido. Historicamente tem sido sempre assim, especialmente o padre, os leigos aqui da nossa paróquia ficam responsáveis pelo secretariado. Portanto, é um desafio, claro, porque a Diocese é muito grande, e eu estando numa ponta não consigo chegar a todo lado. Nesta fase inicial, o que estamos a fazer é estabelecer contacto com as outras paróquias, para ver se conseguimos construir umas pontes e depois conseguirmos chegar a todo lado, fazer um reconhecimento do terreno, ver como é que é a realidade migratória: que serviços existem, que apoio existe. Andamos a fazer aqui, um bocado, um recenseamento da diocese, para depois conseguir agir mais no terreno.

 

É uma Diocese grande e também com um grande fluxo migratório, nesta altura também…

Sim, muito grande, muito grande.

 

Já esta segunda-feira vamos ficar a conhecer a mensagem do Papa para o próximo Dia Mundial do Migrante e do Refugiado. Sabemos que vai estar ligada à dimensão sinodal e vai apresentar os migrantes como um ícone contemporâneo da Igreja em Movimento. É um sinal importante?

Sim, sim, muito importante. Nós sabemos que o título da mensagem é ‘Deus caminha junto ao seu Povo’ e é importante nós reconhecermos este povo, estes irmãos, como parte do nosso povo, sendo parte da nossa Igreja também. Sendo parte da nossa Igreja, também têm algo a dizer-nos, têm de estar connosco nesta dimensão sinodal. Portanto, é muito importante, nesta questão do acolhimento, também ouvirmos e vermos o que é que os irmãos têm para partilhar connosco.

 

Também é preciso promover a vivência da fé e valorizar, como acabou de dizer, aquilo que as outras pessoas trazem à comunidade?

Sim e o que eu noto é que, principalmente os africanos, são pessoas que têm uma fé muito, muito grande, têm uns hábitos, práticas religiosas… acho que só mesmo a fé é que os move e que lhes permite lidar com as adversidades do dia-a-dia. Eu vejo pessoas que não perdem a esperança, que caem e que se voltam a erguer, que dizem sempre: “Deus está comigo e eu vou conseguir”. Isto é algo que nós temos de aprender com eles, porque nas nossas vidas aqui, um bocado mais facilitadas e mais simples, nem sempre temos necessidade de ter este tipo de postura. Eles, no dia-a-dia, é mesmo Deus que os ajuda, é mesmo Deus que caminha com eles.

 

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Agência ECCLESIA

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