Migrações: «Não devemos ter pressa no afastamento; devemos ter pressa, sim, nas políticas de integração»

Na semana em que a Assembleia da República retomou a atividade plena, depois de férias, em que regressa também a discussão do diploma relativo à lei de estrangeiros, e dias após uma manifestação de imigrantes à porta do Parlamento, é convidado da Renascença e da Agência ECCLESIA André Costa Jorge, diretor-geral do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) em Portugal

Foto: Agência ECCLESIA/OC

 

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

O Serviço Jesuíta aos Refugiados alertou para sérios riscos constitucionais e impactos negativos na proteção de direitos fundamentais das pessoas migrantes, no parecer ao presidente da República. Por aquilo que os partidos proponentes das mudanças legislativas já disseram, na sequência do veto presidencial, receia que esses riscos possam permanecer?

Sim, de facto, uma das dimensões do trabalho do Serviço Jesuíta aos Refugiados é aquilo que nós chamamos de defender, a tradução para português de “advocate”, o que fazemos é advocacy: procuramos defender os direitos das pessoas migrantes e refugiadas, onde quer que elas se encontrem, e no caso concreto em Portugal também. E o que fizemos foi analisar a proposta de alteração à lei de estrangeiros e também mais recentemente à lei de nacionalidade. Na nossa análise, de forma resumida, a proposta tinha uma série de violações constitucionais, que foram aliás confirmadas pelo Tribunal Constitucional, e portanto apelamos para que os governos, sejam eles quais forem, possam também entender esse sentido do Tribunal Constitucional: se uma proposta é inconstitucional não pode avançar, é simples, deve ser alterada para estar em linha com aquilo que são os valores, com aquilo que está expresso na Constituição. Na verdade, são os valores civilizacionais que queremos defender para todos, também para aqueles que chegam ao nosso país e querem viver e trabalhar de acordo com a sua condição legal. É isso que procuramos.

 

Por exemplo, quem perder a nacionalidade por ter praticado crime arrisca-se não poder reavê-la. De acordo com uma notícia publicada na semana passada pelo Público, a aquisição de nacionalidade portuguesa por parte de estrangeiros residentes está abaixo da média europeia, dizem-nos os números. Em entrevista à Renascença e ao Público, o ministro Leitão Amaro reiterou que é necessário acelerar os processos da expulsão porque, no seu entendimento, os prazos são demasiado longos. Da parte do Governo, há alguma relutância relativamente à questão da imigração, ou trata-se, como tem vindo a dizer o Governo, de disciplinar a imigração?

Parece-me que este Governo herdou, de facto, uma situação complexa, pesada. Claro que, no nosso entender também se arrisca, tem mostrado sinais de querer ter uma posição severa em relação aos migrantes.

Relativamente à nacionalidade, entendemos que qualquer proposta, qualquer medida que vá no sentido da retirada da nacionalidade deve ser proporcional, excecional e sempre verificada a sua necessidade. A proposta que está em cima da mesa, por exemplo, associa automaticamente crimes comuns, delitos comuns à perda de nacionalidade. Parece-nos que é um excesso punitivo e, portanto, é importante não perdermos de vista que aquilo que a lei deve apontar não é apenas a punição, mas também a recuperação da pessoa e a sua integração, mas para todos, não apenas para estrangeiros.

Aquilo que nos preocupa aqui é o que é que se pretende fazer com a retirada da nacionalidade, isto não recupera ninguém e, sobretudo, quando aquilo que está em cima da mesa são pequenos delitos, delitos comuns. Parece-nos que é uma dimensão excessiva do ponto de vista da punição. A perspectiva cristã, e é aquela com que nós procuramos também olhar para estas matérias, aponta sempre para a recuperação da pessoa, a reintegração da pessoa. Não se trata apenas de castigar ou de punir e, sobretudo, punir retirando a nacionalidade, podendo haver até dimensões em que a pessoa, para ter a nacionalidade portuguesa, pode ter de deixar de ter a sua nacionalidade de origem. Isso pode criar situações de apatridia. Mas não queria ir por aí, queria apenas sublinhar esta dimensão da excecionalidade, da proporcionalidade e da necessidade que a retirada da nacionalidade deve conter, quando se procura inserir estas dimensões na lei da nacionalidade, concretamente.

Um outro aspeto que nos preocupa também tem a ver com a dimensão que esta medida pode criar uma discriminação, vamos dizer assim, entre portugueses originários e portugueses naturalizados, isto é, aqueles que adquirem nacionalidade por residência. Serão sempre portugueses não iguais aos outros portugueses, de alguma forma, e, portanto, há aqui uma violação, na nossa perspetiva, do princípio da igualdade. Aquilo que se quer com a nacionalidade, no fundo, é reconhecer que alguém aderiu à comunidade, pelo viver, por estar integrado, por se inserir na comunidade. O que deve ser promovido é a integração das pessoas, é isso que nós podemos defender. E também, sempre que houver lugar a processos em que as pessoas terão de pagar pelos crimes que cometem, se for essa ocasião, o foco deve ser a reintegração da pessoa o mais rápido possível e não propriamente a exclusão ou a retirada dessa pessoa da comunidade. Porque isso é excessivo e, mais uma vez, aponta muito para a dimensão punitiva.

Lembro também que a proposta prevê que os que são naturalizados há menos de 10 anos e cometam um crime podem perder a nacionalidade. Insistimos que a perspectiva e as medidas devem ser introduzidas, quer na lei de estrangeiros, quer na lei da nacionalidade, devem ser medidas no sentido de reforçar e de promover a integração das pessoas e de criar, não apenas nas pessoas migrantes, mas na sociedade no seu conjunto, maior coesão e maior integração.

 

A outra parte da minha questão tinha a ver com a expulsão de imigrantes. Concorda com o ministro quando diz que os prazos para a expulsão são longos?

Em concreto, não me parece que os prazos de expulsão sejam longos. No fundo, parece-me que o processo de afastamento tem de respeitar um conjunto de etapas que devem, sobretudo, garantir os direitos das pessoas migrantes. E, portanto, não devemos ter pressa no afastamento; devemos ter pressa, sim, nas políticas de integração. Parece-me que essas é que estão a faltar.

Há uma vontade que, na narrativa política vigente, aquela que neste momento na Europa e em Portugal também foi criando raízes e está a ganhar espaço, mas que é necessário combater: é uma narrativa que, no fundo, visa criar um clima de hostilidade em relação aos migrantes e de desconfiança. E a hostilidade e a desconfiança só se combatem com a relação e com a criação de um clima de confiança e abertura, de contacto entre todas as partes, entre todos os cidadãos.

 

Nesses mecanismos de integração, há um instrumento estrutural que é o reagrupamento familiar. O Governo já deixou claro que não concorda com o Tribunal Constitucional e o ministro Leitão Amaro também deixou claro que não abdica do prazo dos dois anos. Da sua perspectiva, isto é uma atitude legítima?

O que nos parece é que o reagrupamento familiar não é uma ameaça, é uma solução. É uma solução para quê? É uma solução para a estabilidade e integração das pessoas migrantes. Não bloqueia a que as famílias se estabeleçam. É muito pior termos migrantes sozinhos, isolados, afastados das suas famílias, em sofrimento, em sofrimento cá e em sofrimento lá, do que ter as pessoas estabilizadas e agrupadas aqui.

Claro que queremos criar as condições na educação, na saúde também, para que estes cidadãos, estes novos cidadãos, eventualmente novos portugueses, possam também aceder e possam também integrar-se nessas dimensões, mas o reagrupamento familiar tem este princípio, o princípio da proteção da família. Não consigo perceber esta questão dos dois anos de espera, que nunca tiveram efeito prático na prevenção da migração irregular, e só faz sentido aquilo que o Tribunal Constitucional fez: chumbar.

 

Há uma cedência ao tal populismo?

Eu creio que, no fundo, há uma necessidade política de narrativa, de dizer “estamos a ser exigentes” e “estamos a querer mostrar algum músculo para com a imigração”. A mim parece-me que, no sentido da decisão do Tribunal Constitucional, devemos voltar ao regime anterior, isto é, o titular de uma alteração da residência pode pedir o reagrupamento com o seu cônjuge, cumprindo os requisitos legais. E, portanto, a questão, na nossa perspectiva, é que o limite temporal deve apenas medir a estabilidade e a integração e não bloquear o acesso ao reagrupamento familiar.

 

Ao insistir nestes dois anos, o Governo pode voltar a ir contra aquilo que é a constitucionalidade da lei?

Bem, deixo isso para quem tem essa tarefa e a função muito importante no contexto da sociedade portuguesa e no contexto político, mas para nós eu prefiro sublinhar isto: o reagrupamento familiar fortalece a integração, fortalece a coesão social. Se tivermos políticas de integração que promovam a coesão social, o contacto entre as pessoas… sabemos, por exemplo, que é no meio escolar que existe maior probabilidade de haver coesão social, criação de laços entre as pessoas diferentes e haver até mobilidade social através do contexto escolar.

Portanto, o reagrupamento familiar não é um problema, é parte da solução e o que os governos devem trabalhar é, no sentido, de criar condições para uma sociedade de diferentes, mas coesa do ponto de vista social e do ponto de vista também daquilo que são os valores e os princípios de uma sociedade que queremos, para hoje e para amanhã e para o futuro.

 

A montante subsistem alguns problemas ao nível, por exemplo, do processo de legalização. A JRS continua atenta a estas dificuldades, continua a verificá-las no terreno?

Continuamos e temos sentido também, por parte de muitos migrantes, um certo pânico, um certo medo em contactar até e vir aos nossos serviços, ao nosso centro de atendimento. Têm medo de serem denunciados, têm medo de serem detidos, têm medo de serem afastados.

 

Mas esse é um clima que já se generalizou?

Eu creio que aquilo que nós vamos sentindo, não sendo nós imigrantes, mas vamos sentindo de uma maneira geral, também passa para estas pessoas, muitas vezes com informações truncadas, com informações erradas, contraditórias.

 

Ou seja, preferem manter-se ilegais a ter de ser repatriados, é isso?

Eu creio que se criou um clima generalizado, com as imagens que vemos nos Estados Unidos e noutros países, em que há uma narrativa constante de que a detenção e a expulsão são a palavra de ordem. As pessoas que não veem viabilidade para as suas vidas, sentem-se naturalmente ameaçadas. Portanto, isto é uma dimensão que é muito nova em Portugal, em bom rigor. Esta sensação de insegurança, até na relação com os organismos do Estado, isso pode ser muito grave e muito prejudicial para a vida dos imigrantes e sobretudo daquelas mais vulneráveis, das crianças, das mulheres.

 

Aquilo que este fenómeno, que é mundial, nos ensina é que quando há dificuldades nas redes de legalização, proliferam as redes ilegais. Temos vários casos de situações de exploração de imigrantes em Portugal. É uma das consequências desse problema?

É muito séria esta dimensão, isto é, os governos devem ver esta dimensão de insegurança que as pessoas sentem na relação que têm com as autoridades, com o Estado, que as pessoas migrantes têm. Eu creio que tudo aquilo que vá no sentido de provocar sentimentos de insegurança, sentimentos de sofrimento e de solidão, pessoas que têm medo de sair à rua, isto para nós é uma situação muito grave e parece-nos que é um clima e um sentimento que se está a generalizar e que nos preocupa muito.

 

Como é que avalia, por exemplo, o discurso mais duro da Igreja em Portugal, com críticas em particular alguma da legislação produzida e também alguns discursos mais radicais?

Eu creio que a Igreja em Portugal tem estado em linha com aquilo que tem dito o Papa Francisco e diz agora o Leão XIV. E, portanto, não há nenhuma novidade nessa matéria. Eu creio que a novidade tem sido um crescendo de hostilidade de discurso por parte de muitos políticos. Há um crescimento também por parte de setores que hostilizam de forma cada vez mais aberta as pessoas migrantes e eu creio que a Igreja também tem de tomar a palavra e tem feito isso.

 

Eu não resisto a perguntar: quem toma essas posições alega muitas vezes fundamentações cristãs, património cristão e a ameaça que os migrantes representam a esse património…

Eu acho que o que é património cristão é ir ao encontro do mundo. A cristandade é que iniciou a evangelização e saída do mundo. Porque se a cristandade fosse para ficarmos fechados no nosso retângulo, no nosso quadrado, a cristandade não teria saído da Europa.

A cristandade, se quisermos, nasce no mundo antigo, no Médio Oriente, hoje, como dizemos, expande-se para a Europa, vai ao encontro de culturas. Mas é ela a própria fruto desse encontro de civilizações e de culturas e de pensamento, desenvolvendo-se, aprofundando-se e depois parte para o mundo. E, portanto, nós não devemos ter nenhum receio que o mundo também venha ao nosso encontro.

O encontro de culturas, o encontro de religiões, o diálogo entre culturas e religiões é, desde sempre, marca identitária da cristandade, se quisermos dizer assim, de matriz ocidental e da qual nós fazemos parte. E, portanto, na nossa perspetiva, a vinda de migrantes não é uma ameaça, é uma excelente oportunidade.

 

E não dizer, por exemplo, que no acesso a uma creche deve ter prioridade quem é autóctone?

Eu creio que o que tem a ver é mais a oferta de lugares para todas as crianças. Nós não podemos entrar nesse critério de… primeiro, ele não faz sentido. O que faz sentido é que todas as crianças tenham acesso à educação e ao pré-escolar, no caso concreto, e ao apoio. Todas as famílias possam ter esse apoio e é para isso que nós votamos, para governos que tragam soluções de resposta às necessidades, concretamente às capacidades, quer na educação, quer na saúde. Não nos parece que o critério seja segregar ou afastar por origem ou cor da pele das pessoas, ou origem nacional, etc.

Nós devemos criar respostas para a sociedade e, se há falta de resposta, nós temos de ser mais exigentes com a criação de novas respostas ou de aumento de respostas, e não de segregar as respostas a partir de critérios que têm tudo para dar mal.

 

Na primeira mensagem do Papa Leão XIV para o Dia Mundial do Migrante e Refugiado, que este ano é celebrado em contexto jubileu, a 5 de outubro, alerta-se para as guerras, violência, injustiça e fenómenos meteorológicos extremos que obrigam milhões de pessoas a deixar a sua terra natal. Situações como, por exemplo, o Sudão, que mediaticamente não tem tanta atenção como outras, mostram que há falta de atenção da comunidade internacional para estes alertas?

Sim, eu creio que aquilo que o Papa Leão XIV nos diz é que a situação, concretamente relativamente ao Sudão, é a evidência de que a comunidade internacional reage tarde, reage de forma insuficiente e desarticulada. E, portanto, nós vivemos um pouco numa dimensão das chamadas notícias do dia, do imediato, e esquecemos, temos uma tendência para ignorar o que aconteceu ontem em função da novidade.

 

Estas crises de refugiados não estão lá longe. Elas vão atingir-nos mais tarde ou mais cedo…

Infelizmente, há uma realidade global em relação àquilo que é a mobilidade humana, ou que obriga a mobilidade humana. Na verdade, a mobilidade humana involuntária é aquela que ocorre por força de guerras, de conflitos, de más decisões políticas, de interesses obscuros focados no lucro material, que empurram e que matam populações e as empurram para fora dos seus locais de origem. São, infelizmente, transversais e não dizem apenas respeito à nossa Europa e ao nosso contexto.

Também temos isso. Infelizmente, já acontece há muitos anos aqui. Lembrando aqui o conflito na Ucrânia, que já tem tanto tempo que, infelizmente, já nos estamos a acomodar à sua existência. Temos estes conflitos e a história também, muito triste história, do conflito israelo-palestiniano. E temos muitos conflitos em África e noutras zonas do globo e na Ásia que têm feito inúmeras vítimas. Aquilo que o Papa nos lembra é que estas pessoas, migrantes e refugiados, são mensageiros de esperança.

A Igreja está, naturalmente e desde sempre, ao lado e faz parte desta peregrinação, destes homens e mulheres e crianças que personificam também o rosto e o corpo e a vida do próprio Cristo, daquilo com que nos identificamos todos. O Papa, felizmente os últimos Papas, não apenas o último e este, têm sido uma voz clara, clarividente, sobre o lugar onde devemos estar. Para retomar a outra pergunta que me fez sobre a Igreja portuguesa, eu fico naturalmente muito feliz, que a Igreja tenha uma palavra também assertiva e clara para com os católicos, mas também para com a sociedade toda, isto é, não podemos embarcar em discursos fáceis e facilitistas de hostilização dos migrantes, porque isso é contrário à mensagem cristã.

A mensagem cristã é clara, nós somos pela justiça social, nós somos pelo acolhimento, nós somos pela hospitalidade, nós somos pelo encontro e por aquele Deus que ama a todos. E, portanto, é isso que temos de ser e praticar. Essa é a nossa identidade. A Igreja portuguesa, a Igreja global, a Igreja Católica, encabeçada pelo Papa Leão, mantém esta visão muito clara de proteção dos mais vulneráveis.

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