Migrações/Europa: «Estamos apenas a prender as pessoas a uma situação de sofrimento» – Isabel Martins da Silva

Neste Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, celebrado pela Igreja Católica, a jurista Isabel Martins da Silva, cofundadora da MEERU (ONGD de apoio à integração de refugiados), é a convidada da Renascença e da Agência Ecclesia

Foto: RR

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

 

Começamos pela chegada de migrantes à ilha italiana de Lampedusa e pelas propostas da presidente da Comissão Europeia para enfrentar o problema. No seu plano de ação, Ursula von der Leyen quer responsabilizar todos os Estados pelo acolhimento. Não será uma utopia, face à manifesta falta de solidariedade entre Estados para tentar encontrar soluções?

Sim, concordo. Nós, que trabalhamos nesta área, ouvimos com muita preocupação o discurso de há uma semana, em Lampedusa, da presidente da Comissão Europeia. Nos últimos 10 anos tem-se insistido numa série de soluções, muitas vezes ad hoc, que não são vinculativas para os Estados e percebemos que a solidariedade dos Estados europeus tem vindo a tornar-se cada vez menos presente. No contexto da crise migratória, em 2015 – também é um termo discutível -, aí falhámos os números. Tínhamos criado uma série de cotas, para cada Estado responder ao acolhimento de pessoas, e aí já falhamos. Passados 10 anos, com o cansaço da União Europeia perante este assunto, creio que ainda será mais difícil encontrar coesão na resposta a este desafio.

 

Está pessimista, relativamente ao plano?

Não gosto de ser pessimista, quero manter aqui um tom de esperança, mas preocupa-me muito, principalmente porque o plano foi anunciado da forma que foi, ou seja, com um tom securitário, de colocar toda a causa do problema nos contrabandistas que fazem a passagem destas pessoas para a Europa, não no tom que eu acho ser o certo, que é o tom humanitário de recordar a dignidade inerente a cada uma destas pessoas, independentemente da sua travessia até à Europa e as causas que a levaram a isso.

 

Essa questão, aliás, da centralidade do combate aos contrabandistas e traficantes, também não deve levantar a preocupação de criar rotas seguras, como, aliás, insistem as organizações de apoio aos refugiados?

Exatamente. Todas as organizações no terreno dizem que o controlo do contrabando é necessário. Obviamente. O problema é que se não for de forma integrada com outras soluções, na verdade estamos apenas a prender as pessoas a uma situação de sofrimento. Temos de, paralelamente, criar vias humanitárias, legais, seguras de chegada à Europa, mas nos últimos anos temos vindo a ver que não tem acontecido ou acontece de forma muito reduzida. Por isso sim, controlarmos o contrabando e o tráfico de pessoas, mas ao mesmo tempo, e de forma legal, sem atirar poeira para os olhos – que é o que temos feito nos últimos anos – conseguir efetivamente fazer com que estas pessoas possam aceder ao direito de asilo e procurarem proteção num país seguro.

 

Ainda relativamente à questão da solidariedade, na verdade, o problema não atinge os 27 da mesma forma. Isso ajuda a compreender, de alguma forma, porque é que a solidariedade entre eles é um princípio avulso ou pouco consistente?

Para quem não está muito dentro dos números e está a ouvir agora, a maioria destas pessoas, porque a geografia assim o dita, chega a países de fronteira, principalmente nos últimos anos, à Espanha, através das Ilhas Canárias, Itália, Grécia, Chipre, Malta e há uma grande concentração de pessoas nestas ilhas, nestes países de fronteira. O sistema europeu – e por isso é que é ou pode ser um erro, falarmos de uma crise migratória, nós que trabalhamos no terreno preferimos falar de uma crise na resposta europeia a este desafio -, o sistema de asilo até aos dias de hoje, faz com que estas pessoas tenham de estar concentradas nestes países, por aquilo que é o Regulamento de Dublin. Ou seja, as pessoas têm de pedir proteção nos sítios onde chegam e por isso são de alguma forma concentradas nestes países. Aquilo que não temos conseguido, nos últimos anos, é fazer com que haja programas estruturados e que façam com que estas pessoas sejam recolocadas destes países de fronteira para outros países, como é o caso de Portugal, França, Alemanha, por aí fora…

 

Não é que as pessoas sejam números, mas vamos lembrar alguns. Desde 2014, estima-se que tenham morrido mais de 17 mil pessoas só no Mediterrâneo ocidental. Tal talvez por isso é que o Papa diga que o Mediterrâneo e o Norte de África são cemitérios de migrantes. Falta aqui uma aposta mais consistente na tentativa de encontrar soluções também a montante, ou seja, nos países de origem desses fluxos migratórios?

Até agosto deste ano, os números eram mais de 2 mil pessoas mortas Mediterrâneo e acho que é importante, muito importante, relembrarmos estes números porque nos últimos dez anos, de alguma forma, nos têm dito que temos conseguido resolver o problema. Na verdade, se formos aprofundar um bocado a questão, percebemos que, aliada às políticas antimigratórias que se praticaram na Grécia, em Itália, os números de chegadas diminuíram, mas os números de mortes mantiveram-se altos, ou seja, significa que as pessoas continuaram a arriscar as passagens, mas existia menos proteção no mar e as viagens tornaram-se mais arriscadas.

Voltando aqui à mensagem deste dia e do Papa Francisco, que nos relembra que o programa, este fenómeno é muito complexo: não podemos nunca olhar só para as chegadas, nem só para as travessias, nem só para os pontos de partida dessas pessoas. Temos de olhar para isto como um desafio complexo, no seu todo. Focarmo-nos, mais uma vez, na questão dos contrabandistas é ignorar, primeiro, que estas pessoas têm a sua própria vontade e a sua capacidade de decisão. No limite, as pessoas decidem partir, independentemente da influência que estes contrabandistas têm no seu processo de vida.

Além disso, concentrarmo-nos nisto é esquecermos todas as causas de violência, perseguição, pobreza, miséria que estas pessoas vivem nos países antes de chegarem a países como a Tunísia, Egito, Líbia…

 

Precisamente a Tunísia… A solução pode passar pelo pagamento de avultados montantes a países os que referiu, para fazer estancar ou conter este fluxo migratório?

Eu creio que não. Ou poderia ser poderia ser uma opção, se fossem países com quem a União Europeia pudesse negociar, confiáveis, mas e aquilo que temos visto é que não são. A Tunísia, nos últimos tempos, desde que o presidente Kaïs Saïed chegou de forma imposta ao Governo por um golpe de Estado…

 

Fala-se de um presidente racista…

Exatamente. Aquilo que temos visto, não estamos a supor, se formos ler aquilo que o presidente tem dito, é que é preciso contrariar supostamente esta invasão negra, porque a Tunísia está-se a transformar num Estado negro e não num Estado árabe. Tem havido mesmo discurso contra as pessoas africanas e, no mês em que foi feito o acordo de que falamos, entre a União Europeia e a e a Tunísia, há registo – várias organizações humanitárias têm provado isso – de que cerca de 600 pessoas foram colocadas por autoridades tunisinas na fronteira com a Líbia, à força, no deserto, completamente desamparadas. Claro que estas pessoas se sujeitam a redes de contrabando, quando estão no meio do deserto e são as únicas soluções…

 

Não se compreende, então, um acordo destes?

Não, compreende-se este acordo como uma forma de desresponsabilização da União Europeia e de externalização da gestão de fronteiras, entregando a um problema, que também é nosso, a uma série de parceiros que, a nosso ver violam direitos humanos e põem em causa a proteção dos direitos das pessoas.

 

Vamos olhar agora um bocadinho mais para a sua relação pessoal com estas questões e começo por lhe perguntar, como é que surgiu esta organização MEERU | Abrir Caminho?

Eu estou, de alguma, forma ligada ao acolhimento de pessoas refugiadas desde 2016, porque foi acolhida na minha paróquia de Santiago de Carapeços (Arquidiocese de Braga) uma família síria, no contexto das grandes chegadas pós-primavera árabe.

Desde aí, por uma série de cruzamentos com outras pessoas que estavam ligadas à plataforma de apoio aos refugiados, que surgiu neste contexto, fiz missão em Lesbos e em Atenas, no contexto urbano, também de acolhimento de pessoas refugiadas.

Apos estas experiências, fazia sentido perceber o que faltava fazer em Portugal, que respostas ainda não existiam. Rapidamente percebemos que não basta acolher, é preciso perceber a forma como o estamos a fazer.

A MEERU surge com o objetivo de tornar o acolhimento focado nas relações e fazer com que, nas comunidades portuguesas que acolhem pessoas refugiadas e migrantes, no futuro não surjam tensões por causa de questões culturais, por causa de questões religiosas. Focamo-nos em promover relações significativas, relações profundas de amizade entre quem acolhe e entre quem é acolhido, de forma que, um dia, nem se perceba esta dicotomia acolhedor-acolhido.

 

Quantas famílias é que ajudam atualmente? 

Neste momento, temos mais ou menos 130 pessoas na nossa comunidade, o que significa 32 famílias que acompanhamos em fases diferentes, ao longo dos últimos quatro anos. Também com um universo mais ou menos de 100 a 120 voluntários, porque o que nós fazemos é ir a comunidades portuguesas no norte litoral e encontrar pessoas locais a quem chamamos voluntários. Na verdade, são amigos que formam equipas de proximidade, que cujo objetivo não é arranjar emprego, ou arranjar casa; ou seja, o objetivo não é dar resposta às preocupações imediatas, pois a essas já há quem as faça.

O que as nossas equipas têm como missão é criar uma relação horizontal, que não seja só de assistência, mas numa relação de amizade com estas pessoas que possa criar coesão, e ao mesmo tempo, criar aqui não apenas uma relação de vítima e de pessoa que ajuda, mas aqui uma relação horizontal de amizade.

 

E tem-se promovido de alguma forma a fixação? 

É um desafio ainda. Das 32 famílias com que trabalhamos, nos últimos anos, perto de 10 abandonaram o país. Isto porque continua a ser um desafio muito grande, fazer com que estas pessoas ao final do programa de acolhimento que, para quem não conhece – neste momento são 18 meses com fundos europeus que apoiam o acolhimento – é muito difícil no final de 18 meses fazer aquilo que na teoria se espera. Que é que essas pessoas sejam autônomas, consigam aceder mercado da habitação. E aquilo que temos vindo a perceber é que a maior causa que leva a que essas pessoas partam para o centro da Europa é efetivamente não conseguirem pagar rendas – altíssimas rendas que também o são para os portugueses. Não conseguirem arrendar também porque ainda há alguma resistência a arrendar a pessoas migrantes, que ainda estão com um, com alguma instabilidade financeira. Eu tenho alguma esperança e tem sido positivo o nosso caminho, mas ainda assim há muitos desafios que levam a que não seja uma solução duradoira duradoura e que o percurso migratório ainda continue muito desafiador no centro de Europa, e em particular de Portugal.

 

Qual é a origem da maioria das famílias que acompanham? 

Isso é bonito na nossa comunidade, porque nós quando fundamos a MEERU percebemos que não íamos limitar o nosso trabalho aquelas categorias que normalmente nos simplificam a realidade, ou seja, não íamos trabalhar nem só pessoa com pessoas refugiadas, nem só com pessoas migrantes ou com pessoas em situação regular ou irregular. Aquilo que nós definimos foi que iriamos trabalhar com pessoas migrantes, independentemente do seu estatuto jurídico, do momento de chegada a Portugal. Isto leva-nos a ter na nossa comunidade pessoas iraquianas, pessoas sírias, pessoas dos camarões, pessoas indianas, pessoas do Bangladesh, pessoas do Congo, ou seja, assim, uma comunidade muito diversa. Também religiosamente diversa o que é interessante.

Isto também nos ajuda a perceber que independentemente do ponto de partida, do que levou as pessoas a partir; seja para virem trabalhar ou por terem fugido por causa de uma guerra ou perseguição, chegando a Portugal, a necessidade de relação e a necessidade de integração exatamente a mesma.

 

Eu faço uma pergunta que tem a ver com a origem de alguns desses migrantes. Quais são as principais de integração é que conseguem identificar?

Existe sempre a questão da língua. Principalmente quando falamos por exemplo das famílias árabes. Os adultos muitas vezes só tiveram alfabetização no alfabeto árabe o que dificulta muito depois a aprendizagem da língua portuguesa. Temos também muitas dificuldades no reconhecimento de uma série de competências que as pessoas já tinham, quer profissionais, quer académicas.

E depois eu diria que a questão da fixação através da habitação é aquilo que tem de alguma forma causado mais instabilidade nos processos de integração em Portugal. Isto porque durante um período de 18 meses as pessoas têm habitação garantida e depois de um momento para o outro esperamos que as pessoas consigam ser autónomas. Isso tem sido o maior desafio. E depois também, na perspetiva de quem acolhe fazer com que voluntários e entidades de acolhimento entendam que o objetivo é a horizontalidade. E fazer com que estas pessoas passem do estatuto de vítimas ao estatuto protagonistas da sua própria vida. E muitas vezes para quem ajuda é muito difícil promovermos esta transformação de mentalidade. Ou seja, não sermos sempre as pessoas que prestam assistência e podermos passar a ser amigos e companheiros de caminho.

 

Durante a Jornada Mundial da Juventude, acompanhou alguns migrantes e refugiados em Lisboa. Como é que foi essa experiência, Isabel? 

Durante a jornada a MEERU teve alguma participação. Através da organização do Centro Internacional para o Diálogo promovemos uma série de encontros onde estiveram pessoas migrantes. Através de um jogo que visava promover o diálogo profundo entre pessoas de diferentes religiões, pessoas de diferentes culturas. Basicamente é estar com um jogo de tabuleiro e através disso fazer com que as pessoas interajam de forma de forma igual.

Depois tivemos também a participação aí diferente, e aí foi a MEERU que foi apresentar o seu trabalho na iniciativa Economia de Francisco – uma iniciativa promovida pelo Papa Francisco desde 2019 – e na Jornada Mundial da Juventude, na Universidade Católica estivemos presentes a apresentar o nosso trabalho como uma forma de contribuir para esta nova forma de organizar o mundo. A economia inspirada em São Francisco de Assis como forma de promover o desenvolvimento integral de cada pessoa. Muitas vezes temos uma visão só académica e a ideia é fazer com que todas as pessoas possam atingir o seu maior potencial e a melhor versão de si próprias. E acreditamos o nosso projeto é uma forma de contribuirmos para isso.

 

Nós já estamos a caminhar para o final dessa conversa. Eu queria regressar a Mensagem do Papa para este Dia Mundial do Migrante e refugiado que se assinala nas comunidades católicas. O Papa diz que o “migrante é Cristo que bate à nossa porta”, e defende “os migrantes fogem por causa da pobreza, do medo, do desespero. Diz mesmo que “para fazer da migração uma escolha verdadeiramente livre é preciso um esforço pelo respeito dos direitos fundamentais e pelo acesso ao desenvolvimento humano integral. A figura de Francisco tem sido fundamental para promover a compreensão e o acolhimento de quem deixa a sua terra?

Sim. Sem dúvida. Para mim que tenho feito um caminho dentro de uma comunidade cristã e de uma paróquia, voltando ao ano que vos disse 2016, e dando-vos o meu exemplo pessoal foi profundamente transformador ouvir o Francisco, por exemplo, na JMJ em Cracóvia pois foi nesse ano que conheci esta família Síria, tê-lo como exemplo e como farol. Ele relembra-nos de forma permanente que estas pessoas são prioridade na nossa ação pastoral. E é muito significativo que a primeira visita apostólica do Papa Francisco tenha sido a Lampedusa em 2013. E ainda noutros contextos verificamos a sua intensão de estar sempre e visitar os últimos entre os últimos. Recentemente estive em Lampedusa, tive essa essa oportunidade, essa bênção de poder estar na ilha de Lampedusa e ter percebido o impacto que a visita do Papa Francisco teve no povo lampedusano. 10 anos passados, quando vemos o facto de na semana passada os habitantes de Lampedusa terem conseguido estar solidários apesar do cansaço, apesar de repente terem na ilha mais pessoas migrantes do que do que locais e mesmo assim conseguirem fechar os restaurantes para poder servir as pessoas… claro que há aqui a própria vontade das pessoas, mas eu acredito que a inspiração de uma Francisco para aquelas pessoas é permanentemente uma fonte de resiliência e de persistência. Por isso, o Papa Francisco tem sido para quem trabalha nesta área uma fonte de energia e ajuda-nos a perceber que, apesar das dificuldades, apesar de os números continuarem a ser assustadores, de podermos não ver aqui respostas ainda no nosso tempo de vida para este fenómeno, há que manter a esperança e permanecermos enquanto sentinelas.

Temos que resistir ao pessimismo. Ouvi com alguma preocupação o que se passou no fim de semana passado, mas ainda assim e muito inspirado pelo Francisco manter aqui uma visão de esperança para aquilo que que vivemos.

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Agência ECCLESIA

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