Migrações: «Dignidade da pessoa não se submete ao papel regular ou irregular» – Eugénia Quaresma

Desde o Hospital Gemelli, de Roma, o Papa divulgou a mensagem para a Quaresma deste ano, em que pede uma atitude acolhedora da Igreja, evocando os migrantes que procuram uma nova vida, longe da pobreza e da guerra. Para abordar este tema e os sinais de preocupação que surgem em Portugal e na Europa relativamente à questão das migrações, é convidada da Renascença e da Agência ECCLESIA Eugénia Quaresma, diretora da Obra Católica Portuguesa das Migrações

Foto: Agência ECCLESIA/MC

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

O Papa mostra que continua atento a um dos temas centrais do seu pontificado e pede nesta Quaresma que se recordem os irmãos e irmãs que hoje fogem de situações de miséria e violência e vão à procura de uma vida melhor. Esta é uma mensagem importante, perante o contexto que se vive em Portugal e na Europa?

É sempre importante ter presentes as origens e as raízes, as causas das migrações. De facto, o Papa permanece fiel e este tema está completamente em linha com o Jubileu que estamos a viver e com a mensagem do Dia Mundial do Migrante de 2024, “Deus caminha com o seu povo”. Francisco apresenta, ousa apresentar os migrantes como ícone da Igreja peregrina e, portanto, não podemos esquecer as raízes históricas e até as raízes humanas de qualquer civilização, que passam pelas migrações.

 

A mensagem é para dentro da Igreja, mas não só. Nesse sentido, há sinais de preocupação com a ascensão da extrema-direita na Alemanha nas últimas eleições?

Com a questão da política e o modo como se instrumentaliza a questão das migrações, porque todos são unânimes a dizer que precisamos de migrantes. Se nós reconhecemos isto, para quê instrumentalizar? Porquê pôr o negativo naqueles que estão, no fundo, a ser proactivos para sair da pobreza, para sair da miséria, para melhorar as sociedades de acolhimento? Porquê ostracizar, porquê diabolizar, mesmo?

 

A situação é tão mais preocupante quanto percebemos que o discurso hostil aos migrantes é transversal às diferentes sociedades e ganha cada vez mais adeptos entre os diferentes eleitorados…

E é não entender a questão das migrações como algo que é humano e que tem de ser visto humanamente. É ficarmos muito presos e centrados naquilo que, cientificamente, se chama aversão ao estranho – qualquer coisa que se passa pelos oito meses, mas que pela relação que vamos aprendendo a alargar o nosso leque familiar. Começa com a família e depois alarga para a escola e temos de aprender a lidar com aquilo que é diverso e com aquilo que é diferente.

 

E em Portugal ainda não aprendemos, ou não estamos a aprender a viver com esta realidade?

Ou então não estamos a fazer eco do tanto bem que já fazemos e das boas práticas que existem. É verdade que existe o medo, mas é importante vencer e enfrentar esse medo e esse medo enfrenta-se na relação, enfrenta-se promovendo o encontro. É este o grande desafio para as comunidades, para as diferentes religiões: promover o encontro, promover o diálogo inter-religioso e intercultural.

 

Num dos pontos da mensagem o Papa deixa mesmo o convite a ir ao encontro da vida concreta de algum migrante, um convite muito direto. O conhecimento da realidade, cara a cara, é a melhor maneira de ultrapassar o preconceito?

É. Quando eu conheço, a pessoa deixa de ser o outro e a pessoa passa a ter um nome. A experiência da Igreja – estou aberta a ouvir das outras comunidades -, de quem trabalha no terreno, é que não há ninguém que não trate as pessoas com que lida pelo nome e isso faz toda a diferença. Não importa a nacionalidade, não importa a religião, importa a pessoa concreta. Algumas comunidades cristãs já abraçaram este desafio de escutar os migrantes e isto tem de ser alargado. Escutar não só os imigrantes que chegam, escutar os nossos emigrantes, as suas experiências, as suas dificuldades, porque também alguns passaram por aquilo que nós estamos a fazer. A estranheza que nós sentimos com determinadas nacionalidades, também os nossos portugueses sentiram essa estranheza, quando estavam lá fora e há locais neste planeta onde só se fala português. Porquê é que estamos a diabolizar, a criar aquele muro, uma divisão entre comunidades?

 

A verdade é que nós vemos um crescente discurso de criminalização dos imigrantes, particularmente os que estão em situação irregular no país. A situação administrativa deve definir uma pessoa? O que é que se pode fazer para contrariar esta tendência?

A posição da Igreja sempre foi que a dignidade da pessoa não se submete ao papel regular ou irregular e o advocacy que as instituições da Igreja fazem recorda a dignidade da pessoa humana em qualquer circunstância. Temos de fazer o esforço, e é para isso que existe o trabalho associativo, de ajudar a parte administrativa a ter um discurso humanista e a não prejudicar. O trabalho da advocacy que fazemos quer ajudar as políticas a tomar consciência de que amorosidade traz menos qualidade de vida para o imigrante.

 

Nós já estamos nestes temas há muitos anos. Começamos a ter uma linguagem que passou do irregular para o ilegal e agora para o criminoso. Foi crescendo, foi-se consolidando nos últimos anos e que agora parece imparável…

Ser imigrante não é crime. Isto tem de ser repetido inúmeras vezes e faz parte da Doutrina Social da Igreja há anos, se formos a ver os documentos e ouvirmos as instituições que trabalham no terreno. Ser imigrante não é crime.

 

Mas tem-se associado muito a insegurança à imigração…

Infelizmente, porque precisam de um bode expiatório. Algumas das causas de insegurança prendem-se com questões estruturais da sociedade e temos de olhar para elas de uma forma estrutural, global. e não afunilar para as comunidades migrantes. Estamos a ser chamados, neste momento, a resolver as questões de toxicodependência que fazem aumentar os níveis de criminalidade; estamos a ser convidados a resolver a questão da habitação, que é estrutural na sociedade portuguesa; somos chamados a resolver a questão da pobreza, não ficando só pelas estratégias no papel, mas resolver a questão da pobreza, ajudar as pessoas, ajudar as famílias a bastarem-se a si próprias. É o princípio da subsidiariedade que a Igreja defende. Como é que nós caminhamos neste sentido? A Pastoral das Migrações tem vindo a falar que é necessário interligar os setores, há esta expressão de trabalhar em conjunto, de colaborar, de construir pontes, porque é isto de facto que faz a diferença e que pode ajudar-nos enquanto sociedade.

Se nos mantivermos na polarização, estamos a descurar aquilo que ajuda a coesão social, precisamos todos uns dos outros…

 

Nós temos, além desta questão da criminalização, imagens que talvez não ajudem muito…

E que é instrumentalizada.

 

Vemos que continuam as filas à porta da AIMA, parece não haver uma resposta efetiva para o problema destas pessoas, estamos a falar de 450 mil processos pendentes, são muitas vidas suspensas e isto também tem consequências na sociedade em geral…

Claro que sim. A pessoa sente-se… traz dificuldades.

 

O Estado não está a tratar estas pessoas com dignidade?

Sobre a questão das filas, das pessoas a passar a noite em frente à AIMA, também temos esta situação, passar a noite à frente a um Centro de Saúde – são estas estruturas que vão procurando maneiras de terminar com esta realidade. No Concelho onde vivo, durante alguns anos, ainda era adolescente, o Centro de Saúde tinha o mesmo problema: as pessoas iam para lá de madrugada para serem atendidas, mas conseguiram encontrar uma forma para terminar com as filas e a pessoa ser atendida na hora que chega…

 

O problema é que não se acaba com as filas e temos 400 e tal mil processos pendentes?

Ainda temos, estão a trabalhar, está-se a tentar investir em recursos humanos. Agora, é preciso perceber que é um problema de gestão, acho que é muito da gestão do serviço, adaptar-se à procura. Foram tomadas algumas medidas para diminuir esta pressão, nomeadamente quando se terminou com as manifestações de interesse, e aquilo que se vai percebendo é que ainda não é suficiente, mas estão a tomar-se medidas, só que elas não são imediatas e não resolvem logo.

 

Temos ainda o problema do alojamento das famílias migrantes. Diferentes instituições e organismos, incluindo a Obra Católica, têm alertado para a precariedade das habitações sobrelotadas, há mesmo quem fala de uma espécie de “rodízio de camas”. Continua a faltar a devida fiscalização? O que foi denunciado em Odemira acontece noutras zonas do país?

Na altura em que foi denunciado Odemira, fazendo assim um périplo por algumas dioceses disseram que não era só em Odemira, nalgumas outras zonas que vivem da agricultura também tinham situações semelhantes. Aquilo que se procurou fazer, a nível da Igreja, para além de estar atento e de acompanhar, respondendo, foi criar respostas interligadas com outras instituições do terreno, isto acontece em Beja e noutras regiões também. Com algumas comunidades houve também este alerta e procurou-se fazer este trabalho em rede…

 

Também nos grandes centros se encontra esta realidade de camas sobrelotadas, aliás, de aluguer de colchões, não é?

Era a questão da fiscalização…

 

E essa parece que não funciona.

Não funciona e que os agentes, por exemplo, da Autoridade para as Condições de Trabalho falam também em falta de recursos. É questão da fiscalização, por um lado, e por outro lado é também esta consciência que se procura trabalhar de contrariar a exploração, a questão ética, que também está em cima da mesa. Nós tendemos a apontar para as questões políticas, para as entidades, para as instituições, mas também a consciência do cidadão que explora. Não devemos estar só à espera da fiscalização, mas, como cidadão, pôr-me na posição de não explorar outro cidadão e contribuir para que estas situações vão diminuindo.

 

No momento em que falamos, os olhos do mundo continuam postos no hospital Gemelli, onde o Papa está a recuperar de problemas respiratórios. Este pontificado tem sido marcado por muitos apelos em defesa dos migrantes e dos refugiados, aliás, desde a histórica viagem de Lampedusa, logo no início. Francisco pode ajudar a mudar a perceção das comunidades católicas, relativamente a esta matéria?

Muitas vezes, os sinais de rejeição aparecem ligados a convicções religiosas. Pergunto se isso se justifica e se encontra também no seu dia-a-dia esses discursos?

Infelizmente, dentro da Igreja encontramos discursos de rejeição e discursos que não são apologistas do diálogo inter-religioso, mas o Papa Francisco deu um sinal que pode ser muito eficaz, não só no papel, mas com gestos concretos. Quando pôs as migrações no centro da agenda da Igreja, ele deixa-nos, desde 2019, uma série de orientações pastorais para diversos setores das migrações, documentos esses que estão a ser divulgados, que estão a ser trabalhados, e que revelam aquilo que ele vai pondo em prática e que tem de se continuar a pôr em prática. Portanto, não é o pensamento do Papa Francisco, mas é um pensamento milenar, e que reside, tem uma base bíblica.

 

Não é um capricho…

Não é. Há vários papas que falam sobre esta temática, que não é nova: a hospitalidade é um valor para o cristão, é um valor partilhado com outras confissões religiosas, e temos de o trabalhar. Temos de o levar a sério. Nós vamos entrar no tempo da Quaresma, é um tempo em que há um apelo muito grande à conversão, e a conversão passa por esta revisão de vida, pelo modo que eu olho para o outro, e por este desafio de o tornar meu irmão ou minha irmã. Não é algo que nasce, mas eu torno-me, com convicção, passa pela oração.

A oração tem esta virtude e esta exigência: ela existe para que eu me transforme e concretize aquilo que rezo. O Evangelho fala-nos da hospitalidade, o Antigo Testamento também nos fala da hospitalidade, o que deve prevalecer é esta capacidade de olhar o outro, escutar o outro, tocar o outro com respeito, e na relação há reciprocidade: o outro também é convidado a olhar-me com respeito, não há só uma relação de direitos, como às vezes eu ouço, há direitos e deveres. Não ficarmos presos na nossa bolha, é este o desafio, não ficarmos presos na nossa bolha, seja ela nacional, seja ela religiosa.

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