Mensagem quaresmal do bispo do Algarve

A fé actua pela caridade (cf Gl 5,6)

O tempo da Quaresma constitui, anualmente no caminho para a Páscoa, um tempo privilegiado para analisarmos a verdade da nossa relação com Deus, a autenticidade das nossas relações fraternas a credibilidade do nosso testemunho cristão.

A Mensagem de Bento XVI, em Ano da Fé, sobre a estreita relação entre fé e caridade, constitui um precioso e oportuno auxílio neste caminho, que somos convidados a percorrer.

Para além desta mensagem habitual, o Papa surpreendeu-nos a todos, dentro e fora da Igreja, com a comunicação da sua renúncia ao ministério de Bispo de Roma e sucessor de Pedro, assumida com toda a verdade e liberdade, face à diminuição das suas forças físicas e consequente incapacidade de poder corresponder às exigências deste serviço à Igreja.

Queremos acolher estas duas mensagens, que se iluminam mutuamente, usufruindo do “testamento” que Bento XVI quis legar, nesta hora, a toda a Igreja, ao convocá-la para, em tempo quaresmal, repensar a sua fidelidade a Cristo, numa atenção permanente ao mundo, a que é enviada a anunciar a Boa Nova da salvação.

O mundo em que nos situamos, concretamente esta região algarvia, continua a apresentar-nos as consequências duma crise económica e social, que tarda a dar mostras de passar. Ainda que possam surgir alguns indícios neste sentido, mais anunciados do que verificáveis, o certo é que o desemprego continua a crescer.

O Algarve continua, invariavelmente, na primeira linha, com a maior taxa de desemprego. Esta situação continua a reclamar a nossa mobilização, particularmente quando os apelos da Palavra de Deus, neste tempo quaresmal, e das “duas mensagens” de Bento XVI, nos despertam para a verdade da fé, unida à caridade, em resposta ao amor de Deus e no serviço aos mais necessitados.

1. A fé, recorda-nos Bento XVI, é acolhimento, adesão e resposta ao amor primeiro, gratuito e “apaixonado” de Deus, manifestado plenamente em Cristo. Resposta de quem está continuamente a caminho, e por isso de um amor nunca “concluído e completado”.

Deus não se contenta com a nossa resposta ao seu amor gratuito; quer atrair-nos para Si e transformar-nos tão profundamente, de modo a nos tornarmos participantes da sua própria caridade.

Acolher o seu amor significa, assim, deixar que Ele viva em nós e nos leve a amar com Ele, n’Ele e como Ele; só então a nossa fé se torna verdadeiramente uma fé que actua pelo amor (cf Gl 5, 6).

A fé faz-nos acolher o mandamento do amor; a caridade dá-nos a felicidade de o pôr em prática (cf Jo 13,13ss).

Pela fé, somos gerados como filhos de Deus; a caridade faz-nos perseverar nesta filiação divina de modo concreto, produzindo o fruto do Espírito Santo (cf Gl 5, 22).

A fé faz-nos reconhecer os dons que Deus, pela sua bondade e generosidade, nos confia; a caridade fá-los frutificar (cf Mt 25, 14-30). Uma fé sem obras é como uma árvore sem frutos.

A fé e a caridade estão tão intimamente unidas que se reclamam e alimentam mutuamente. Este indissolúvel entrelaçamento possibilita a integração entre contemplação e ação; entre o encontro com

Deus e o serviço aos irmãos; entre o zelo dos apóstolos no anúncio do Evangelho e a solicitude no serviço aos pobres.

Limitar a caridade à solidariedade ou à ajuda humanitária seria profundamente redutor. A fé, ao iluminar os nossos gestos e atitudes, indica-nos que a primeira obra de caridade é repartir o pão da Palavra e introduzir no relacionamento com Deus, com a convicção de que o anúncio de Cristo é o primeiro e principal fator de desenvolvimento e que o amor de Deus, quando acolhido e correspondido, torna possível o desenvolvimento integral da humanidade e de cada homem.

Tudo parte do acolhimento humilde da fé, “saber-se amado por Deus”, mas deve chegar à verdade da caridade, “saber amar a Deus e ao próximo”, que permanece para sempre, como coroamento de todas as virtudes (cf 1Cor 13, 13) (cf Bento XVI, Mensagem Quaresmal, 2013).

2. A decisão recente de Bento XVI contém uma mensagem que, pela sua coragem e as motivações pessoais que a sustentam, ultrapassa os limites geográficos e humanos da Igreja Católica. Ela aproxima-nos ainda mais de Bento XVI, na comunhão e no – “sentire cum Ecclesia” – pensar com a Igreja.

Se a sua fragilidade física se acentuava, de modo natural e irreversível, o Papa continuava a cativar-nos pela sua profundidade espiritual e pela lucidez e clarividência do seu pensamento.

Habituados ao estilo peculiar do Beato João Paulo II, seu predecessor, Bento XVI foi gradualmente surpreendendo e cativando, mesmo os mais “céticos” a seu respeito, dentro e fora das fronteiras da Igreja.

Admirávamos já o seu estilo simples, discreto e profundo; a sua fragilidade física e o vigor do seu pensamento; a sua frontalidade em assumir e enfrentar as “chagas” que fragilizam a Igreja, causa principal do seu sofrimento, mais do que ataques exteriores; a sua coragem em promover o diálogo com todos: conciliador com as fações dentro da Igreja, ecuménico e envolvente com as Igrejas cristãs, inter-religioso e aberto com o islamismo e o judaísmo.

O seu amor à verdade aproximou-o de quantos, provenientes de diferentes saberes e culturas, a procuram de modo existencialmente honesto. Fez depender da verdade, apoiada no amor, o desenvolvimento humano integral: um grande desafio para a Igreja num mundo em crescente e incisiva globalização.

Só através da caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objetivos de desenvolvimento dotados de uma valência mais humana e humanizadora.

A partilha dos bens e recursos, da qual deriva o autêntico desenvolvimento, não é assegurada pelo simples progresso técnico e por meras relações de conveniência, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem (cf Rm 12, 21) e abre à reciprocidade das consciências e das liberdades.

A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade dum desenvolvimento humano integral (cf Caridade na Verdade 9).

Muito nos “ensinou”, Bento XVI, nestes poucos anos do seu ministério petrino. Mais nos diz agora com esta sua decisão corajosa, desprendida, reveladora da procura do “melhor” no serviço a Cristo, à Igreja e ao mundo.

Mensagem eloquente que queremos acolher, em tempo de conversão quaresmal, empenhados na procura da verdade da nossa condição de discípulos de Cristo e da autenticidade do nosso serviço à Igreja.

3. O Conselho Presbiteral, tendo presente as consequências da crise, indicou, à semelhança do ano passado, que o contributo penitencial desta Quaresma reverta para o Fundo Diocesano Social.

Em 2012 o Fundo recolheu e distribuiu 36.136,39€, correspondendo 27.352,98€ ao contributo penitencial. Já foi distribuída a soma total de 91.196,25€, quantia com algum significado, mas muito à quem da possibilidade de satisfazer os inúmeros pedidos, chegados de todo o Algarve.

Manifesto o meu reconhecimento a quantos se servem deste meio para a partilha fraterna. Este contributo, à semelhança dos outros anos, pode ser prestado nas comunidades paroquiais ou através de depósito bancário (NIB 001800000617213600178).

Apesar das dificuldades conhecidas, renovo o meu apelo a um continuado empenho, sem esmorecermos na generosidade.

Que este tempo da Quaresma, rumo à celebração do acontecimento da Cruz e da Ressurreição, mistério do Amor de Deus manifestado em Cristo, por nós e para nós, nos fortaleça na fé e na caridade.

Queremos igualmente intensificar a nossa comunhão, como Igreja diocesana do Algarve, na resposta ao pedido que Bento XVI nos dirigiu: rezar por ele, pelo seu sucessor e pela Igreja, intenção que deve estar presente nas celebrações eucarísticas dominicais e, de modo particular, durante o próximo Conclave.

Possa esta Quaresma contribuir para que a fé se torne “caridade em ação”, “companheira de vida”, fazendo de todos “sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo” (cf A Porta de Fé, 15).

 

+ Manuel Quintas, Bispo do Algarve

Quarta-feira de Cinzas, 13.02.2013

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