Quaresma, tempo de Aprontamento
Caros irmãos, em Cristo
1. Estamos a viver novamente o drama da guerra, em solo europeu. Para já, trata-se de uma pesada derrota para a Humanidade porque, como em todos os conflitos, vem ao de cima o lado mais tenebroso da realidade, como a morte, o sofrimento de inocentes, a miséria, a implacável aplicação da lei do mais forte… É caso para questionarmos: onde se encontra a humanidade? E, mais uma vez, esta encontra-se numa encruzilhada – como sucedeu em tantos outros momentos da História.
Por isso, este ano, a Quaresma será vivida, nas Forças Armadas e nas Forças de Segurança, ao ritmo dos desenvolvimentos da Paz, das suas vicissitudes, dos seus avanços e recuos, das suas vitórias e atropelos. E, tal como sucedeu na ainda mui recente crise sanitária da SARS-COV-2, também agora, nesta crise civilizacional despoletada pela invasão da Ucrânia por parte da Rússia, verifica-se a emergência das Forças Armadas e das Forças de Segurança como fatores decisivos na defesa das pessoas e na salvaguarda das suas vidas, ao mesmo tempo que geram horizontes de esperança porque se empenham a construir uma civilização assente em valores e regida pelo Direito.
Nesse sentido, a par de uma intensa preparação militar e estratégica, que já acontece, é também necessária uma preparação de cariz humano e espiritual, ao nível da interioridade de cada um. A formação “do soldado” deve andar sempre acompanhada da formação “da pessoa”, enquanto ser espiritual que tem, na abertura à transcendência, a sua ponta de diamante, conjuntamente com a ética e o humanismo.
Para isso, nenhum outro momento é tão oportuno como a Quaresma.
2. Enquanto “tempo de preparação”, a Quaresma possui o fascínio, a exigência e a urgência que caraterizam os Aprontamentos, esses períodos que antecedem e preparam as grandes Operações.
O fascínio reside no processo de crescimento que se opera, enquanto aperfeiçoa a pessoa, a faz progredir com novas aprendizagens, tornando-a mais forte e mais habilitada na arte da estratégia de combate ao inimigo. E o inimigo é tudo o que diminui o ser humano e o escraviza – como o pecado, o mal, os vícios, as detrações da vida.
A exigência dirige-se, sobretudo, a cada um, pela necessidade de limar determinadas arestas, tanto da personalidade, como do estilo de vida, a fim de nos configurarmos, cada vez mais, com o espírito e o estilo de Jesus Cristo.
A urgência vem ditada pela prontidão heroica que todo o projeto vitorioso requer; uma das marcas da vitória de Jesus sobre a morte, foi o facto de Ele se ter “dirigido resolutamente para Jerusalém” (Lc 9, 51), ao encontro do patíbulo da Cruz.
Para as Forças Armadas e Forças de Segurança, a Quaresma tem, pois, tudo para ser um “tempo de Aprontamento”, na medida em que oferece a cada Militar, a cada Polícia, a cada Militarizado, a cada civil, a possibilidade de progredir na santidade, na cultura da dignidade, na vida da Graça e no humanismo cristão.
3. Proponho três estratégias para construir esse caminho:
Vencer-se a si próprio: não aceitar ser dominado pelos impulsos primários, nem ficar refém de lógicas egocêntricas que apenas colocam os próprios interesses ou as vantagens para si mesmo, como medida e peso de todas as coisas. O combate e a vitória exercidos sobre as inclinações menos positivas, no âmbito da interioridade de cada pessoa, são a condição para lutar e derrubar as múltiplas facetas do mal que proliferam. Quando recordamos o itinerário proposto por Jesus, em vista da configuração pessoal e comunitária ao plano salvífico de Deus, revelado e atualizado em Cristo, deparamo-nos com aquele apelo profético: «Se alguém me quiser seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.» (Mt 16, 24)
A Quaresma é um tempo favorável para a atuação dessa renúncia que conduz ao despojamento daquilo que é impróprio, desde a fraqueza, ao individualismo, passando pela exacerbada dependência de impulsos e pulsões menos saudáveis… Integram-se, neste âmbito, as práticas do jejum, de atos penitenciais sacramentais, e tantas outras formas de ascese.
Oração, como lugar e experiência de encontro, graças ao qual percecionamos e assimilamos a especificidade do Outro, de Deus que nos acolhe, nos fala e escuta, e dos outros, nossos irmãos. Nenhuma outra situação nos identifica tanto com os sentimentos de misericórdia, de perdão e do amor de Deus, como a oração, assim como é na comunhão com o Senhor que fazemos nossos os sofrimentos, as angústias e as esperanças dos irmãos.
Por isso, a oração vivida com particular intensidade e dedicação nesta Quaresma configurará os nossos corações à imagem do coração de Deus e plasmará o nosso espírito em sintonia com o espírito dos nossos irmãos mais débeis, sofredores e perseguidos.
Acolhimento e hospitalidade. O bem é o fruto que desponta das sementes da graça de Deus lançadas na alma hospitaleira e acolhedora. Quando a mesma alma se disponibiliza a receber os irmãos, em atitude de hospitalidade, o fruto produzido por esse acolhimento do outro – com a sua história, o seu percurso, a sua cultura… – é uma sociedade fraterna. Os antigos romanos tinham uma terrificante sentença acerca do ser humano – homo homini lupus. Quando abordamos a vida, os outros, Deus… com o primado da abertura e da hospitalidade fecundamos a fraternidade no mundo – e dele despontará uma humanidade de irmãos.
4. Sintamo-nos interpelados a viver este “tempo de Aprontamento” com a aspiração de nos tornarmos mais fortes, interior e espiritualmente, para sermos mais robustos na resposta aos desafios que este dramático momento histórico exige de nós, e levaremos mais força às porções de humanidade que seremos chamados a defender e a proteger.
Dentro deste mesmo contexto de propósitos, promoveremos, no âmbito local de cada Unidade, a recolha de alimentos para enviar ao povo mártir da Ucrânia.
O fruto da renúncia quaresmal reverterá, por compromisso assumido já precedentemente e dificultado pela pandemia, para a construção de escolas em Bangui, na República Centro Africana.
Nossa Senhora, Rainha da Paz, nos ilumine, conduza as Forças Armadas e Forças de Segurança, proteja Portugal e abençoe o mundo.
+ Rui Valério
Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança
Ordinariato Castrense, 02 de março de 2022