Mensagem do Papa para o 53.º Dia Mundial da Paz

«A Paz como caminho de esperança: diálogo, reconciliação e conversão ecológica»

1. A paz, caminho de esperança face aos obstáculos e às provações

A paz é um bem precioso, objeto da nossa esperança; por ela aspira toda a humanidade. Pôr esperança na paz é um comportamento humano que alberga uma tal tensão existencial que o momento presente, às vezes até fatigante, «pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros dessa meta, se esta meta for tão grande que justifique a fadiga do caminho»1. Assim, a esperança é a virtude que nos coloca a caminho, que nos dá asas para continuar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis.

A nossa comunidade humana traz, na memória e na carne, os sinais das guerras e dos conflitos que têm vindo a suceder-se, com crescente capacidade destruidora, afetando especialmente os mais pobres e os mais frágeis. Há nações inteiras que lutam para se libertarem das cadeias de exploração e corrupção que alimentam ódios e violências. A muitos homens e mulheres, crianças e idosos, ainda hoje se nega a dignidade, a integridade física, a liberdade – incluindo a liberdade religiosa –, a solidariedade comunitária, a esperança no futuro. Inúmeras vítimas inocentes carregam sobre si o tormento da humilhação e da exclusão, do luto e da injustiça, se não mesmo os traumas resultantes da opressão sistemática contra o seu povo e os seus entes queridos.

As terríveis provações dos conflitos civis e dos conflitos internacionais, agravadas muitas vezes por violências sem piedade, marcam prolongadamente o corpo e a alma da humanidade. Na realidade, toda a guerra se revela um fratricídio que destrói o próprio projeto de fraternidade, inscrito na vocação da família humana.

Sabemos que, muitas vezes, a guerra começa pelo facto de não se suportar a diversidade do outro, o que fomenta o desejo de posse e a vontade de domínio. Nasce, no coração do homem, a partir do egoísmo e do orgulho, do ódio que leva a destruir, a dar uma imagem negativa do outro, a excluí-lo. A guerra alimenta-se com a perversão das relações, com as ambições hegemónicas, com os abusos de poder, com o medo do outro e a diferença vista como obstáculo; e simultaneamente alimenta tudo isso.

Como fiz notar durante a recente viagem ao Japão, é paradoxal que «o nosso mundo viva a dicotomia perversa de querer defender e garantir a estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança, que acaba por envenenar as relações entre os povos e impedir a possibilidade de qualquer diálogo. A paz e a estabilidade internacional são incompatíveis com qualquer tentativa de as construir sobre o medo de mútua destruição ou sobre uma ameaça de aniquilação total. Elas só são possíveis a partir duma ética global de solidariedade e de cooperação ao serviço de um futuro modelado pela interdependência e pela corresponsabilidade em toda a família humana, de hoje e de amanhã»2.

Todas as situações de ameaça alimentam a desconfiança e o fechamento. Desconfiança e medo aumentam a fragilidade das relações e o risco de violência, num círculo vicioso que nunca poderá levar a uma relação de paz. Neste sentido, a própria dissuasão nuclear só pode criar uma segurança ilusória.

Por isso, não podemos pretender manter a estabilidade no mundo através do medo da aniquilação, num equilíbrio muito instável, pendente sobre o abismo nuclear e fechado dentro dos muros da indiferença, onde se tomam decisões sócio-económicas que abrem caminho para os dramas do descarte do homem e da criação, em vez de nos protegermos uns aos outros3. Então como construir um caminho de paz e mútuo reconhecimento? Como romper a lógica doentia da ameaça e do medo? Como quebrar a dinâmica de desconfiança atualmente prevalecente?

Devemos procurar uma fraternidade real, baseada na origem comum de Deus e vivida no diálogo e na confiança mútua. O desejo de paz está profundamente inscrito no coração do homem e não devemos nos resignar com nada de menos.

 

2. A paz, caminho de escuta baseado na memória, solidariedade e fraternidade

Os sobreviventes aos bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui – denominados os hibakusha – contam-se entre aqueles que, hoje, mantêm viva a chama da consciência coletiva, testemunhando às sucessivas gerações o horror daquilo que aconteceu em agosto de 1945 e os sofrimentos indescritíveis que se seguiram até aos dias de hoje. Assim, o seu testemunho aviva e preserva a memória das vítimas, para que a consciência humana se torne cada vez mais forte contra toda a vontade de domínio e destruição. «Não podemos permitir que as atuais e as novas gerações percam a memória do que aconteceu, aquela memória que é garantia e estímulo para construir um futuro mais justo e fraterno»4.

Como eles, há muitos, em todas as partes do mundo, que oferecem às gerações futuras o serviço imprescindível da memória, que deve ser preservada, não apenas para evitar que voltem a cometer-se os mesmos erros ou se reproponham os esquemas ilusórios do passado, mas também para que a memória, fruto da experiência, constitua a raiz e indique o caminho para as opções de paz presentes e futuras.

Mais ainda, a memória é o horizonte da esperança: muitas vezes, na escuridão das guerras e dos conflitos, a lembrança, mesmo de um pequeno gesto de solidariedade recebida, pode inspirar opções corajosas e até heroicas, pode pôr em movimento novas energias e reacender nova esperança nos indivíduos e nas comunidades.

Abrir e traçar um caminho de paz é um desafio muito complexo, pois os interesses em jogo, nas relações entre pessoas, comunidades e nações, são múltiplos e contraditórios. É preciso, antes de mais, fazer apelo à consciência moral e à vontade pessoal e política. Com efeito, a paz provém do mais fundo do coração humano, e a vontade política deve ser incessantemente revigorada para abrir novos processos que reconciliem e unam pessoas e comunidades.

O mundo não precisa de palavras vazias, mas de testemunhas convictas, de artesãos da paz abertos ao diálogo sem exclusões nem manipulações. De facto, só pode chegar-se verdadeiramente à paz quando houver um convicto diálogo de homens e mulheres que busquem a verdade para lá das ideologias e das diferentes opiniões. A paz é «um edifício a construir continuamente»5, um caminho que percorremos juntos, procurando sempre o bem comum e comprometendo-nos a manter a palavra dada e a respeitar o direito. Com a escuta mútua podem crescer também o conhecimento e a estima do outro, até ao ponto de reconhecer no inimigo o rosto de um irmão.

Por conseguinte, o processo de paz é um empenho que se prolonga no tempo. É um trabalho paciente de busca da verdade e da justiça, que honra a memória das vítimas e abre, passo a passo, para uma esperança comum, mais forte que a vingança. Num Estado de direito, a democracia pode ser um paradigma significativo deste processo, se estiver baseada na justiça e no compromisso de tutelar os direitos de cada um, especialmente se vulnerável ou marginalizado, na busca contínua da verdade6. Trata-se duma construção social em elaboração permanente, para a qual cada um presta responsavelmente a própria contribuição a todos os níveis da comunidade local, nacional e mundial.

Como sublinhava o Papa São Paulo VI, «a dupla aspiração – à igualdade e à participação – procura promover um tipo de sociedade democrática. […] Isto, de per si, já diz bem qual a importância de uma educação para a vida em sociedade, em que, para além da informação sobre os direitos de cada um, seja recordado também o seu necessário correlativo: o reconhecimento dos deveres de cada um em relação aos outros. O sentido e a prática do dever são, por sua vez, condicionados pelo domínio de si mesmo, pela aceitação das responsabilidades e das limitações impostas ao exercício da liberdade do indivíduo ou do grupo»7.

Pelo contrário, a fractura entre os membros duma sociedade, o aumento das desigualdades sociais e a recusa de empregar os meios para um desenvolvimento humano integral colocam em perigo a prossecução do bem comum. Mas o trabalho paciente, baseado na força da palavra e da verdade, pode despertar nas pessoas a capacidade de compaixão e solidariedade criativa.

Na nossa experiência cristã, fazemos constantemente memória de Cristo, que deu a sua vida pela nossa reconciliação (cf. Rm 5,6-11). A Igreja participa plenamente na busca de uma ordem justa, continuando a servir o bem comum e a alimentar a esperança de paz, através da transmissão dos valores cristãos, do ensino moral e das obras sociais e de educação.

 

3. A paz, caminho de reconciliação na comunhão fraterna

A Bíblia, particularmente através da palavra dos profetas, atrai as consciências e os povos à aliança de Deus com a humanidade. Trata-se de abandonar o desejo de dominar os outros e de aprender a olharmo-nos mutuamente como pessoas, como filhos de Deus, como irmãos. O outro nunca há de ser circunscrito àquilo que pôde ter dito ou feito, mas deve ser considerado pela promessa que traz em si mesmo. Só escolhendo a senda do respeito é que será possível quebrar a espiral da vingança e empreender o caminho da esperança.

Guia-nos o passo do Evangelho que reproduz o seguinte diálogo entre Pedro e Jesus: «“Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?” Jesus respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete”» (Mt 18,21-22). Este caminho de reconciliação convida-nos a encontrar no mais fundo do nosso coração a força do perdão e a capacidade de nos reconhecermos como irmãos e irmãs. Aprender a viver no perdão aumenta a nossa capacidade de nos tornarmos mulheres e homens de paz.

O que é verdade em relação à paz na esfera social é verdadeiro também no campo político e económico, pois a questão da paz permeia todas as dimensões da vida comunitária: nunca haverá paz verdadeira, se não formos capazes de construir um sistema económico mais justo. Como escreveu Bento XVI, há dez anos, na Carta Encíclica Caritas in veritate: «A vitória sobre o subdesenvolvimento exige que se atue não só na melhoria das transações fundadas no intercâmbio, nem apenas nas transferências das estruturas assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de atividade económica caraterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão» (n.39).

 

4. A paz, caminho de conversão ecológica

«Se às vezes uma má compreensão dos nossos princípios nos levou a justificar o abuso da natureza, ou o domínio despótico do ser humano sobre a criação, ou as guerras, a injustiça e a violência, nós, crentes, podemos reconhecer que então fomos infiéis ao tesouro de sabedoria que devíamos guardar»8.

Vendo as consequências da nossa hostilidade contra os outros, da falta de respeito pela casa comum e da exploração abusiva dos recursos naturais – considerados como instrumentos úteis apenas para o lucro de hoje, sem respeito pelas comunidades locais, pelo bem comum e pela natureza –, precisamos de uma conversão ecológica.

O Sínodo recente sobre a Amazónia impele-nos a dirigir, de forma renovada, o apelo em prol duma relação pacífica entre as comunidades e a terra, entre o presente e a memória, entre as experiências e as esperanças.

Este caminho de reconciliação inclui também escuta e contemplação do mundo que nos foi dado por Deus, para fazermos dele a nossa casa comum. De facto, os recursos naturais, as numerosas formas de vida e a própria Terra foram-nos confiados para ser «cultivados e guardados» (cf. Gn 2,15) também para as gerações futuras, com a participação responsável e diligente de cada um. Além disso, temos necessidade de uma mudança nas convicções e na perspetiva, que nos abra mais ao encontro com o outro e à recepção do dom da criação, que reflete a beleza e a sabedoria do seu Artífice.

De modo particular brotam daqui motivações profundas e um novo modo de habitar a casa comum, de convivermos uns e outros com as nossas diversidades, de celebrarmos e respeitarmos a vida recebida e partilhada, de nos preocuparmos com condições e modelos de sociedade que favoreçam o desabrochar e a permanência da vida no futuro, de desenvolvermos o bem comum de toda a família humana.

Por conseguinte, a conversão ecológica a que apelamos leva-nos a uma nova perspetiva sobre a vida, considerando a generosidade do Criador que nos deu a Terra e nos chama à jubilosa sobriedade da partilha. Esta conversão deve ser entendida de maneira integral, como uma transformação das relações que mantemos com as nossas irmãs e irmãos, com os outros seres vivos, com a criação na sua riquíssima variedade, com o Criador que é origem de toda a vida. Para o cristão, uma tal conversão exige «deixar emergir, nas relações com o mundo que o rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus»9.

 

5. Alcança-se tanto quanto se espera 10

O caminho da reconciliação requer paciência e confiança. Não se obtém a paz se não a esperamos.

Trata-se, antes de mais, de acreditar na possibilidade da paz, de crer que o outro tem a mesma necessidade de paz que nós. Nisto, pode inspirar-nos o amor de Deus por cada um de nós, amor libertador, ilimitado, gratuito, incansável.

O medo é, frequentemente, fonte de conflito. Por isso, é importante ir além dos nossos temores humanos, reconhecendo-nos filhos necessitados diante d’Aquele que nos ama e espera por nós, como o Pai do filho pródigo (cf. Lc 15,11-24). A cultura do encontro entre irmãos e irmãs quebra a cultura da ameaça. Torna cada encontro uma possibilidade e um dom do amor generoso de Deus. Faz-nos de guia para ultrapassarmos os limites dos nossos horizontes estreitos, procurando sempre viver a fraternidade universal, como filhos do único Pai celeste.

Para os discípulos de Cristo, este caminho é apoiado também pelo sacramento da Reconciliação, concedido pelo Senhor para a remissão dos pecados dos batizados. Este sacramento da Igreja, que renova as pessoas e as comunidades, convida a manter o olhar fixo em Jesus, que reconciliou «todas as coisas, pacificando pelo sangue da sua cruz, tanto as que estão na terra como as que estão no céu» (Col 1,20); e pede que ponhamos de parte toda a violência nos pensamentos, nas palavras e nas obras, quer para com o próximo, quer para com a criação.

A graça de Deus Pai oferece-se como amor sem condições. Recebido o seu perdão, em Cristo, podemos pôr-nos a caminho para ir oferecê-lo aos homens e mulheres do nosso tempo. Dia após dia, o Espírito Santo sugere-nos atitudes e palavras para nos tornarmos artesãos de justiça e de paz.

Que o Deus da paz nos abençoe e venha em nossa ajuda.

Que Maria, Mãe do Príncipe da paz e Mãe de todos os povos da terra, nos acompanhe e apoie, passo a passo, no caminho da reconciliação.

E que toda a pessoa que vem a este mundo possa conhecer uma existência de paz e desenvolver plenamente a promessa de amor e vida que traz em si.

 

Vaticano, 8 de dezembro de 2019

Francisco

 

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1 Bento XVI, Carta enc. Spe salvi, 30 de novembro de 2007, 1.
2 Discurso sobre as armas nucleares, Nagasáqui – Parque «Atomic Bomb Hypocenter», 24 de novembro de 2019.
3 Cf. Francisco, Homilia em Lampedusa, 8 de julho de 2013.
4 Francisco, Discurso sobre a Paz, Hiroxima – Memorial da Paz, 24 de novembro de 2019.
5 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 78.
6 Cf. Bento XVI, Discurso aos dirigentes e membros das Associações Cristãs dos Trabalhadores Italianos (ACLI), 27 de janeiro de 2006.
7 Carta ap. Octogesima adveniens, 14 de maio de 1971, 24.
8 Francisco, Carta enc. Laudato si?’, 24 de maio de 2015, 200.
9 Ibid., 217.
10Cf. S. João da Cruz, Noite Escura, II, 21, 8.

 

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