Mensagem de D. Joaquim Gonçalves sobre o Ano Paulino

O Ano Paulino: a paixão de Paulo 1 – Como acontece frequentemente nos grandes romancistas e compositores onde um tema de base enche a alma do artista e transborda em todas as obras, a paixão de Paulo de Tarso é a pessoa de Jesus Cristo, aquele que o apanhou. Algumas cartas de Paulo assemelham-se a partituras musicais onde os nomes de Deus e de Jesus Cristo soam como refrães, o primeiro citado 500 vezes e o segundo 286. Homem profundamente religioso, Paulo debatia-se entre a leitura que o judaísmo oficial fazia da Bíblia e do projecto do Messias e a que os cristãos professavam a partir do que Jesus disse de Si mesmo e da história bíblica. Ainda hoje esse é o nó górdio para qualquer judeu piedoso. Alguns estudiosos (como o P. Romano Penna) gostam de dizer que «um judeu nunca se converte» no sentido de «abandonar o passado», mas que, «ao fazer-se cristão, anda para a frente», desabrocha, mantendo-se plenamente judeu. De certo modo, foi assim com Paulo, foi assim com Edite Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz) e até com o cardeal Lustigier, de Paris. De qualquer modo, a «volta» dada no modo de entender a Bíblia é profundíssima, e uma tal perspectiva «nasce do encontro com Jesus», é obra da graça e não de mera reflexão académica. 2- Após a «iluminação» de Damasco, a pessoa de Jesus Ressuscitado torna-se a chave que abre o mistério da Bíblia e a força que dilata o coração de Paulo, de tal modo que este acaba por chamar «lixo» a todo o passado, incluindo a sua estrutura mental. Faz lembrar a surpresa do homem que deixa a escuridão do túnel e entra de repente na luz do meio-dia solar: até a luz anterior lhe parece sombra. De toda a vida de Jesus, o mistério da Cruz é o que melhor revela a Paulo o mistério íntimo de Jesus, e esse mistério revela-lhe também o mistério do homem, o mistério do mal, do mundo e da história. A própria Incarnação é para Paulo a primeira etapa da «descida» de Deus, verdadeira «queda de Deus» no mundo, sendo a segunda «queda» a sepultura (Filip 2, 6-8). «Nada mais sei, a não ser Jesus Cristo e Cristo crucificado», repete o Apóstolo por toda a parte. O mistério do Deus do Sinai, que Paulo servia apaixonadamente, adquire uma dimensão nunca sonhada: permanecendo único, Deus ilumina-Se por dentro – «Deus é Pai, de Quem Jesus é o Filho único feito homem, e é Espírito Santo». Paulo evolui da concepção de um Deus algo distante, «Iavé» ou «Jeová» (que alguns escritores racionalistas do séc.XIX traduziram acidamente por um «o grande Solitário do espaço sideral» ou o «Deus das esferas celestes») para um Deus comunidade de pessoas, Deus vivo que se interessa pelo mundo todo e não somente por Israel, um Deus tão próximo de nós que vai ao ponto de Se fazer homem, visível, com todas as consequências daí resultantes, desde a sujeição às condições naturais do espaço e do tempo, da fome, da sede, do cansaço; às condições sociais da estrutura política e religiosa; e às condicionantes morais da distorção do seu pensamento, do desprezo da mensagem, da calúnia, da prisão, do enxovalho público e oficial, da morte na cruz. Jesus não é uma figura brilhante nem a conclusão lógica de uma reflexão, mas a incarnação histórica da filantropia radical do próprio Filho de Deus! Esta percepção de Deus como Deus doação» é algo totalmente novo, que irá incendiar o coração de Paulo e levá-lo a fazer de si mesmo uma doação a Jesus Cristo e aos pagãos. Acabou-se para Paulo a religião de «Deus distante» do monte Sinai (Iavé) e do «santo dos santos» do templo de Jerusalém; altera-se o conceito de «santidade»: no judaísmo «ser justo» identificava-se com o cumprimento das prescrições da lei mosaica num espírito de «autoconstrução» do homem que se «afirma» diante de Deus; agora, «ser justo» ou «santo» é mergulhar com humildade e gratidão constantes nessa onda de amor que desce de Deus e que projecta a pessoa para fora de si, para Deus e para os outros. Dessa nova luz nascerão as fórmulas de saudação que Paulo emprega nas suas cartas e que usamos nas celebrações litúrgicas: «A graça de N.S.J. Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco». Não são fórmulas jurídicas, mas a proclamação jubilosa da fé cristã. 3- Na fidelidade à pedagogia pedida pelo Papa durante o Ano Paulino, impõe-se fazer aqui uma paragem para a «revisão de vida» pessoal e do meio em que se vive. Nos seus contactos apostólicos, Paulo de Tarso encontrou pessoas com percursos religiosos muito diferentes do seu: judeus que continuam prisioneiros do Sinai, do Templo e dos ritos (Actos, 13,4; 15) e não o acompanham na abertura a Jesus Cristo; pagãos com um religiosidade cheia de superstições (Actos, 14,8; 16,16) e sensualidade (ICor 5;6), o racionalismo grego (Actos 17,22) e a literatura pagã (Actos19,19), o agnosticismo e cepticismo das autoridades romanas (Actos 24;25;26), e cristãos judaizantes saudosos dos ritos e praxes mosaicas. A todos eles Paulo procura conduzir até ao sol da sua vida – Jesus Cristo. Uma babilónia e opacidade semelhantes enchem o espírito dos nossos contemporâneos: uns parecem não ter uma sensibilidade religiosa definida, bloqueados numa religiosidade «light», uma espécie de energia cósmica, New Age cor-de-rosa, que evita um «Deus pessoa» e que adia as perguntas fundamentais; alguns cristãos vivem um culto despersonalizado, «sem relações pessoais» com Jesus Cristo; há intelectuais que são moinhos de palavras a filosofar sobre Deus e Jesus unicamente pelo «prazer de falar»; outros andam em análises sociológicas e dialécticas políticas sem fim. Em alguns há mesmo a pretensão de transformar a mentalidade actual numa lei positiva da história, e falam de uma época «pós-cristã», isto é, uma época posterior àquela que conheceu Jesus Cristo, que a ultrapassou, que já vai mais à frente e, quanto mais se libertar dEle, melhor seria. 4- Em qual dessas situações se encontram o leitor e as pessoas do seu meio? – Há «judaizantes», prisioneiros de palavras e frases bíblicas do Antigo Testamento sobre sangue, nomes de Deus, e outros temas? – Há quem «ponha Jesus de lado» e se contente com uma vaga relação com Deus, como faz uma certa filosofia racionalista, que «diz acreditar em algo»? Percebem que a influência de um tal Deus não passará na vida diária de um enfeite, um «Deus inútil», como diria Pascal e Mauriac, por ser «um Deus à medida de cada um»? – Nos meios cristãos, ao falar de Jesus a tónica é posta no Natal ou na Páscoa? O Calvário ainda é visto como o «lugar do castigo», do «fracasso de Jesus»? Que alcance tem o uso do «Sinal da Cruz» na vida pessoal e nas celebrações? O sofrimento diário do cristão é visto como «esquecimento» e «castigo de Deus»? – Sente-se que a pessoa de Jesus Cristo é mesmo o centro do culto cristão ou este é feito de «muitas coisas religiosas»? A prática cristã anda em busca de «mínimos» ou revela alguma «paixão»? – Há quem se sinta «liberto» pelo facto de não ser cristão? Estamos mesmo convencidos que Jesus Cristo é o futuro da religião, do homem, do mundo e do próprio Deus, e que, sem Ele, todo o humanismo se torna lânguido e raquítico? Que fazer? Leva tempo a fazer esta análise dos sentimentos interiores que se cruzam na teia do coração, mas ela é necessária para se fazer a «mudança paulina». D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real

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