Quereis oferecer-vos a Deus?
Horizontes contemporâneos da entrega de si
É para mim motivo de particular satisfação poder saudar cordialmente os participantes deste simpósio e poder dirigir uma breve palavra de abertura, a modo de meditação ou lectio divina, acerca do tema sobre o qual se debruça.
Trata-se, desde logo, de um tema de abertura da mensagem de Nossa Senhora, de uma dimensão fundamental da mesma e de uma marca da vida inteira dos pequenos videntes: “Quereis oferecer-vos a Deus?”.
Fazer este convite pode soar, na cultura atual, a algo estranho, provocar porventura um sorriso despiciente de troça ou um encolher de ombros de indiferença. Por isso torna-se necessário refletir sobre o horizonte, o fundamento, as dimensões, a beleza e a atualidade desta “oferta de si” na existência cristã, na vida comunitária, na cultura e na configuração do mundo – os “horizontes contemporâneos da entrega de si”.
Horizonte histórico-cultural e salvífico deste apelo
O Papa Bento XVI, na sua homilia de 13 de maio em Fátima, oferece-nos uma chave hermenêutica deste apelo, lendo-o à luz da missão profética da mensagem, com toda a profundidade: “O homem pôde despoletar um ciclo de morte e de terror, mas não consegue interrompê-lo… Na Sagrada Escritura, é frequente aparecer Deus à procura de justos para salvar a cidade humana e o mesmo fez aqui, em Fátima, quando Nossa Senhora pergunta: <>. Com a família humana pronta a sacrificar os seus laços mais sagrados no altar de mesquinhos egoísmos de nação, raça, ideologia, grupo, indivíduo, veio do céu a nossa bendita Mãe oferecendo-se para transplantar no coração de quantos se Lhe entregam o Amor de Deus que arde no seu”.
O Santo Padre situa este aspeto no horizonte histórico-cultural e político da época e na perspetiva histórico-salvífica. De facto, este apelo da Senhora não caiu “ex abrupto” aos ouvidos dos pastorinhos. Eles já tinham sido introduzidos pelo Anjo no mistério do Deus santo e adorável e no seu desígnio de misericórdia para com a humanidade caída no abismo da guerra e da banalidade do mal pelo afastamento em relação a Deus até à sua rejeição.
O acento tónico aqui recai sobre a misericórdia de Deus que suscita em resposta a oferta de si como dom e missão e que se deve manifestar na existência crente para glória de Deus e do seu amor e para reparação do pecado do mundo a começar pela conversão dos corações.
A vida no mundo como liturgia cósmica do dom de si no amor (Rom 12,1-2)
Este horizonte é-nos ilustrado mais ampla e maravilhosamente por S. Paulo em Rom 12, 1-2: “Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. É este o vosso verdadeiro culto espiritual. Não vos conformeis a este mundo. Antes, deixai-vos transformar pela renovação do vosso modo de pensar, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito”.
Deste texto queria sublinhar brevemente alguns aspetos que nos ajudam a compreender a profundidade e a beleza da oferta de si e nos abrem para largos horizontes da sua atualização.
a) Um apelo de ternura à cooperação na misericórdia
Em primeiro lugar, trata-se aqui dum apelo de quem fala com o coração, com a ternura do amor de um pai, como nos faz ver o verbo grego usado “parakalo” (paraklesis-parakletos). Não é algo de moralista. Paulo acrescenta: “pela misericórdia de Deus”. É Deus que, através de Paulo, nos fala com este amor paterno, com este cuidado solícito por nós. É pois um apelo à graça, à misericórdia que Deus pôs em nós para que a deixemos atuar, para que se torne ativa em nós, cooperando com Ele.
b) A vida no mundo como dom de si no amor: a liturgia cósmica
De seguida especifica o como: “oferecei os vossos corpos…”. Aqui está a manifestação mais clara da originalidade do culto cristão. Fala da liturgia não como cerimónia mas como vida. O corpo é o homem na sua totalidade indivisível, o homem todo que se expressa, se relaciona e age no e através do corpo, lugar necessário da sua existência, da sua relação a Deus, aos outros e ao mundo. Assim, nós mesmos no nosso corpo e como corpo devemos ser liturgia com toda a nossa existência no mundo, em união com Cristo e como Ele que fez a liturgia do mundo, a liturgia cósmica oferecendo-se a si mesmo, em amor e por amor, fora do templo e da cidade santa, no meio do mundo, no coração da vida quotidiana.
O nosso viver quotidiano no nosso corpo, nas pequenas e grandes coisas, deve ser inspirado e permeado pela realidade divina de modo a tornar-se cooperação com Deus e a transformar toda a nossa vida em verdadeiro louvor e adoração.
Do dom amoroso de si a Deus nasce o dom de si no amor aos homens.
c) O não conformismo cristão
Depois desta definição fundamental da nossa vida como liturgia de Deus, de entrega amorosa de cada dia com Cristo, Paulo sublinha então uma consequência e exigência: “Não vos conformeis a este mundo…”: é o não conformismo do cristão perante a potência e a banalidade do mal, do pecado, que desfigura e desumaniza o mundo. Não se trata de desertar do mundo ou desinteressar-se dele; antes, trata-se de se deixar transformar por Deus, transformando assim o mundo, a cultura dominante. Atualizemos com exemplos concretos.
Vemos o poder do mal hoje, por exemplo, em ação em dois grandes poderes, que embora úteis e bons em si, podem tornar-se ídolos, falsas divindades que subjugam o homem e o mundo: o poder dos mercados financeiros e o dos media.
“Estamos a ver como o mundo da finança pode dominar sobre o homem, que o ter e o aparecer dominam o mundo e o escravizam. O mundo da finança não representa mais um instrumento para favorecer o bem estar, a vida do homem, mas torna-se um poder que o oprime, que deve ser quase adorado: a mammona iniquitatis (o dinheiro da iniquidade), real divindade falsa que domina o mundo… Depois,o poder da opinião publicada. Temos necessidade de informações, de conhecimento das realidades do mundo, mas pode tornar-se num poder da aparência: no final, quanto é dito ou quanto é imagem conta mais que a verdadeira realidade. Uma aparência sobrepõe-se à realidade, torna-se mais importante e o homem não segue mais a verdade do seu ser, mas prefere sobretudo aparecer”(Bento XVI).
Perante isto, os cristãos são chamados ao não conformismo, a não sacrificar às divindades pagãs do poder, do ter, do aparecer, do gozar imediato e a todo o custo e a renovar a mentalidade e o coração.
Nesta perspetiva, o Papa Bento XVI convida a revigorar as experiências financeiras e económicas fundadas sobre uma economia ao serviço do bem comum, mediante a implementação da fraternidade, do dom e da gratuidade como bens relacionais, da justiça – expressões típicas da cultura do bem comum que exige a cultura da entrega de si para além da cultura estrita do mercado (cf CV n. 54).
A Virgem oferente, ícone vivo da entrega de si
No momento em que a jovem de Nazaré aceita oferecer a Deus a sua colaboração a favor da salvação dos homens, toda a sua vida assume o significado de uma entrega de si mesma. Esta oferta de si e da sua função materna pelo reino eterno que o Filho realizaria (Lc 1, 33), constitui uma dimensão fundamental do ser de Maria.
Segundo a Exortação apostólica Marialis Cultus de Paulo VI, este dom de si assume um caráter cultual numa tríplice dimensão, a saber, na apresentação do templo, junto à cruz e no sacrifício eucarístico, o que faz dela a “Virgem oferente”(cf n. 20), ícone vivo da entrega de si.Mesmo junto à cruz é-lhe pedido para se entregar como Mãe de Misericórdia para estar junto de todos os crucificados pela dor ou pela injustiça.
“Bem cedo, os fiéis começaram a olhar para Maria, a fim de, como ela, fazerem da própria vida um culto a Deus, e do seu culto um compromisso vital… Maria é modelo sobretudo daquele culto que consiste em fazer da própria vida uma oferenda a Deus… O ‘sim’ de Maria é para todos os cristãos lição e exemplo, para fazerem da obediência à vontade do Pai o caminho e o meio da própria santificação” (MC n. 21).
Os pastorinhos e a mística da entrega de si: inspiração e desafio para hoje
Na escola de Maria e do seu Imaculado Coração, os pequenos videntes aprenderam a dizer “sim, queremos” ao apelo da Senhora. Um sim total, inteiro, que lhes brota do coração. De facto, através do Anjo e de Nossa Senhora, Deus arrebatou o coração dos pastorinhos à sua misericórdia, elevando-o à sua altura, de modo a que eles experimentassem a riqueza da sua misericórdia e a beleza do seu amor. Deste modo gerou neles a mística do sim, da entrega a Ele, como estilo de vida embora cada um de modo próprio.
Esta mística deve também contagiar-nos, inspirando-nos e desafiando-nos a vivê-la hoje: a dar testemunho como eles da primazia de Deus e da nossa pertença a Ele através da nossa entrega, disponibilidade e adoração como modo de viver e tipo de cultura face a uma anticultura do esquecimento, da indiferença e até do desprezo de Deus e de Jesus Cristo; a dar testemunho da cultura do dom, da gratuidade, da partilha e da solidariedadeface a uma anticultura mercantilista do dar para receber em troca; e ainda o testemunho da alegria e da felicidade nesta doação de si a Deus e aos outros. Como bem sintetiza o Papa Bento XVI:
“Exemplo e estímulo são os Pastorinhos, que fizeram da sua vida uma doação a Deus e uma partilha com os outros por amor de Deus. Nossa Senhora ajudou-os a abrir o coração à universalidade do amor.(…) Só com este amor de fraternidade e partilha construiremos a civilização do Amor e da Paz”.
Congratulamo-nos em que todos estes tópicos sejam aprofundados e declinados nos seus vários casos neste simpósio ao qual auguramos um feliz êxito, a fim de que Fátima, tendo como mestres Maria e os Pastorinhos, se torne para todos, pequenos e grandes, escola da entrega de si a Deus para a redenção do mundo.
†António Marto, Bispo de Leiria-Fátima
Fátima, 15 de junho de 2012