Natal – Estímulo para uma Cidadania plena
1. Se o Natal existe tal como o temos, é porque este modelo de celebração responde a algum tipo de necessidades humanas. Ora, pesem todas as teorias, e são muitas, necessidades basicamente necessidades, sem cuja satisfação não podemos sequer subsistir, só há duas: de pão e de afeto. Ao pão associamos o conjunto dos bens materiais que nos permite uma existência digna, uma participação social por direito próprio, uma radical igualdade com os demais; ao afeto associamos o conjunto de bens sociais, psicológicos, culturais e espirituais que nos faz sentir desejados, acolhidos, amados, e nos remete sempre para uma indizível plenitude de comunhão com os outros, com a vida, com a criação, com o transcendente, com Deus.
Ora o Natal, na sua génese e história antropológica, religiosa e cultural, reenvia-nos sempre para este mundo do afeto, da comunhão, da plenitude de vida, do Absoluto. É isso que torna o Natal um “tempo especial”, é essa a sua magia.
2. Desde o seu nascimento, Jesus quis viver entre os últimos da sociedade: comeu com os desprezados, tocou os leprosos, participou nas alegrias e sofrimentos dos humildes, denunciou e combateu as injustiças de uma sociedade organizada à medida dos senhores do mundo. Tal como então, também hoje há dois grupos de pessoas bem definidas: de um lado, os pobres, os ignorantes, os desprezados, os «não justos» que esperam uma palavra de amor, de afeto, de esperança e de libertação; do outro, os ricos, os poderosos, os que vivem isolados e distantes dos mais débeis, certos de que já possuem tudo o que precisam para ser felizes e, portanto, não necessitam de nenhum salvador.
3. Enquanto membros da Comissão Diocesana Justiça e Paz percebemos na Incarnação de Deus em Jesus de Nazaré a mais radical de todas as respostas à nossa necessidade de pão e de afeto: Deus e o homem tornaram-se aliados na construção do Reino da justiça e da paz, da fraternidade e da verdade, do bem no tempo presente e da jovialidade por toda a eternidade.
A esta luz, queremos desafiar-nos e desafiar os nossos coetâneos à utopia de um Natal vivido na verdade das relações, na sobriedade que se abre à solidariedade, na gratuidade da presença amiga, junto de familiares, de amigos e dos últimos da sociedade. Em boa verdade é essa a mística do presépio, como tantas vezes no-lo ensinaram os poetas, mesmo aqueles que se confessam agnósticos.
4. Contudo, para responder universalmente e reequilibrar entre si as respostas tanto às necessidades de pão como às necessidades de afeto, não chegam as boas vontades e gestos individuais, nem sequer das várias iniciativas da chamada sociedade civil por mais meritórios que sejam. É preciso que aqueles que gerem “o bem comum”, nos governos, na administração pública e nas empresas, nas escolas e na comunicação social, nos tribunais ou nas forças de segurança, trabalhem ativamente sobre as estruturas concretas que podem facilitar este processo. O Natal obriga-nos, em nome da Incarnação do Senhor Jesus e em nome do homem e da mulher concretos, incarnados, histórica e culturalmente situados, a reclamar dos agentes privilegiados da vida coletiva a luta sem tréguas pelo bem de todos e de cada um.
5. Estamos a viver o Natal num tempo de crise, uma crise real, que mergulha na pobreza e no desespero muitos dos nossos irmãos e transporta consigo uma profunda mudança de paradigma. Esta circunstância obriga-nos a deixar também um desafio às comunidades cristãs, de que fazemos parte. Muitas vezes, sem nos apercebermos disso, somos levados na grande “onda” do modo comum de vida que nos rodeia. A própria fé cristã, mesmo quando se exprime no voluntarismo religioso, tantas vezes se deixa envolver pelo individualismo, pelo hedonismo, pelo consumismo. A solidariedade, a caridade e a comunhão estão longe de ser práticas assimiladas na Igreja, mesmo quando partilhamos generosamente alguns bens. Mas nós acreditamos que no Natal, em Jesus, Deus quis incarnar no meio dos pobres e com eles iniciar a nova humanidade, onde a fraternidade acabasse com a divisão discriminatória e injusta e trouxesse a libertação para todos. E sabemos que, como Povo de Deus, nos compete prolongar as ações amorosas de Jesus, que tornem presente e eficaz na sociedade a força libertadora do Reino de Deus. Assim sendo, de que lado estamos? Somos ricos ou pobres, oprimidos ou opressores, distantes ou próximos, livres ou escravos do consumismo?
6. Para todos, o Natal é um tempo de forte dinâmica. Os desafios que nos lança, de modo especial aos crentes, não podem ficar-se pela sua dimensão intelectual, nem por gestos pontuais, mas devem atingir as próprias bases em que assenta a nossa sociedade tão globalizada: o Natal ou se torna numa vivência sempre renovada ao jeito de Jesus de Nazaré ou não é Natal.
Esses desafios estão apontados no modo como Deus incarnou na nossa história, no Menino que nasceu em Belém:
– solidariedade máxima – Deus assume a condição daqueles que quer tornar felizes. Deus não nos salva de cima, mas vem construir connosco a nossa própria história de libertação e portanto nós devemos viver a solidariedade não com um sentimento de compaixão vago e pontual mas como estilo de vida permanente e responsável por todos, procurando construir a História a partir dos mais carenciados e em estreita cooperação com eles;
– construção da paz – o Seu nascimento foi acompanhado pelo desejo divino da paz, um bem tão frágil mas tão necessário: “Paz na terra aos homens de boa vontade” e esse Menino, “Príncipe da Paz”, desafia-nos a sermos construtores da paz, na nossa família, com os nossos amigos e inimigos, em todos os âmbitos da nossa sociedade;
– simplicidade – a gruta onde quis nascer desafia-nos à simplicidade, a uma simplicidade de vida que passa pela sobriedade e moderação na utilização dos recursos da natureza, mas também simplicidade interior que supera medos indefinidos, incompreensões mútuas, falta de esperança e de sentido para a vida e que potencia uma sociedade cada vez mais assente na transparência, honestidade, acolhimento do outro, luta pela justiça e respeito pelos direitos fundamentais e pela dignidade inviolável de cada pessoa e de cada povo;
– prioridade aos deserdados deste mundo – nasce pobre, numa noite fria e o Seu nascer como pobre e abandonado numa noite tão fria desafia-nos a dar a prioridade máxima aos deserdados deste mundo, aos marginalizados e excluídos, aos explorados por um sistema que absolutiza o dinheiro nas suas mais variadas formas, secundarizando a pessoa, o trabalho como vocação e realização pessoal, a criatividade de cada um, a igualdade de oportunidades;
– absoluto de vida – Deus encarna, nasce feito carne e cultura humana e o Seu nascimento desafia-nos a construir uma cultura da vida, uma vida em abundância, em todos os seus momentos e circunstâncias, para todos, seja para a geração presente seja para as gerações futuras, que nada mais podem fazer que herdar o mundo que lhe deixarmos e como lho deixarmos.
7. Em resumo, nesta época de solidariedade e amor, somos chamados a testemunhar a responsabilidade, a repartição de bens e dons, a fraternidade e a gratuidade; a desencadear comportamentos individuais e comunitários de honestidade pública e privada no desempenho das funções de cada um; a respeitar a honradez nos compromissos assumidos; a rejeitar qualquer colaboração nas várias formas de economia paralela e a combate-la por todos os meios legais e morais; a estimular o exercício decidido da cidadania, própria e alheia, no respeito pela solidariedade e a subsidiariedade; a dedicar uma especial atenção às velhas e às novas formas de pobreza.
8. O Deus-Menino veio para fazer desaparecer todas as situações de opressão e violência e abrir uma nova era, uma era de paz, justiça e fraternidade. Reconhecido e acolhido pelos “últimos”, foi recusado e condenado pelos poderosos. Para todas as gerações, para todas as sociedades, também para nós, o Menino do presépio será sempre “sinal de contradição” (Lc 2, 34).
Coimbra, 13 de dezembro de 2011