Ana Lúcia Agostinho, Diocese de Setúbal
Vivemos uma era em que o digital se infunde na nossa a realidade. De tal forma que, a cada dia, em média, passamos cerca de 7 horas em frente a ecrãs – quase um terço do nosso dia! E só nos nossos smartphones, empenhamos entre 2 a 4 horas em redes sociais, ativamente ou simplesmente a fazer scroll.
Embora tenhamos a sensação de que, olhando para o ecrã, entramos numa espécie de realidade virtual, a verdade é que os ponteiros do relógio continuam a andar. Quantas vezes temos a intenção de ver “só um vídeo” ou “só um post”, mas quando caímos em nós, apercebemo-nos que de vídeo em vídeo, de post em post, consumimos horas que pouco ou nada nos acrescentam. Se fizermos as contas, talvez nos assustemos com o tempo de vida que usamos de um modo tão superficial e alienado com os olhos voltados para um pequeno retângulo. Tempo que, além do mais, tem prejuízo para o nosso estado emocional, a nossa qualidade de sono, a nossa saúde, a nossa produtividade. No fundo, despendemos tanto tempo em algo que condiciona a nossa liberdade e faz mal à alma.
Não quero com isto dizer que as tecnologias sejam necessariamente nocivas. Na verdade, tantas vezes se apresentam como um bem, uma dádiva de Deus, que favorece o contacto e a partilha. O Papa Francisco desafia-nos a “aproveitar as possibilidades de encontro e solidariedade oferecidas pelas redes sociais, para que a rede digital não seja um lugar de alienação, mas sim um lugar rico em humanidade” (Vídeo do Papa, junho de 2018).
O cerne da questão está na utilização ordenada deste bem. Colocar na balança do “tanto quanto” inaciano. Saber utilizar as tecnologias tanto quanto nos conduzam no sentido do encontro, do bem-fazer e da paz. Saber privar-se delas tanto quanto nos alienem em gestos repetitivos e sem sentido que nos distraem do essencial, ou pior ainda, com mensagens e comentários que possam ferir o outro.
O tempo quaresmal em que nos encontramos, convida-nos a (re)parar. A parar aquele passo meio automático em que vamos seguindo ao longo do ano, em que fazemos as coisas já só por fazer. A reparar no modo como vivemos, nos movimentos que vão no nosso interior, no nosso desejo de Deus, nos passos sintonizados e nos passos desalinhados com esse desejo. E por fim, a repará-los desde dentro, ordenando o nosso tempo, as nossas motivações e as nossas ações, no sentido do encontro com o mistério que nos habita.
Aproveitemos este tempo propício para não deixar a vida passar por nós (nem nós por ela) como um scrolling vazio de sentido, abrindo espaço para o encontro. Encontro com quem somos verdadeiramente, para lá dos filtros: seres em conversão. Encontro com Deus que nos ama como somos, sonhando-nos melhores. Encontro com os outros, beneficiando do bom que a tecnologia nos pode oferecer, mas melhor ainda: ousando baixar o ecrã e gozar o valor da presença, do abraço, do rirmos e chorarmos juntos, do tocar e ser tocado, do cansarmo-nos e gastarmo-nos no caminho real que percorremos uns com os outros, cuidando uns dos outros.
Ana Lúcia Agostinho é psicóloga e coordenadora do Departamento de Juventude da Diocese de Setúbal