Memórias do dia da libertação pessoal e do país

Maria Conceição Moita estava presa em Caxias no dia 25 de abril de 1974. Participou em ações contra a ditadura e sobretudo contra a guerra nas colónias portuguesas. E teve um papel determinante nos acontecimentos da Capela do Rato: leu a declaração que convocava a vigília de 48 horas

Agência Ecclesia – Que liberdade conquistou no dia 25 de abril de 1974?

Maria Conceição Moita – No dia 25 de abril de 1974 estava presa, na cadeia de Caxias, como estavam muitos cristãos. Não soubemos que tinha havido a revolução nem o golpe militar pelo Movimento das Forças Armadas. Apenas tivemos conhecimento vagamente no final do dia 25. Percebemos que havia algumas alterações nas rotinas na cadeia, alguns companheiros que seriam julgados nesse dia e que não foram.

Houve um automóvel que tentou comunicar com os presos de Caxias. Através de sinais sonoros, a partir da autoestrada. Disse que tinha havido um golpe de estado e que iriamos ser libertados. Mesmo sem ouvir toda a mensagem, percebemos as duas últimas palavras: “derrubado” e “coragem”.

Ficamos muito entusiasmadas, eu e as três pessoas que estavam na cela comigo, porque queríamos que aquele pesadelo acabasse rapidamente.

No dia 26 de abril a horas tardias, já noite, fomos libertados depois de algumas diligências para que todos os presos políticos fossem libertados e não alguns como inicialmente tinha sido anunciado.

Foi uma libertação que teve um significado pessoal enorme! Estava presa há seis meses. Tinha passado pela tortura, isolamento numa cela sozinha e finalmente com outras companheiras.

Foi uma libertação única. Era a minha libertação pessoal depois de uma situação de cativeiro; a libertação do meu país, que tanto desejava; o fim da ditadura e a conquista da palavra “liberdade” que faltava; e depois a libertação dos povos das colónias, uma luta onde estava particularmente implicada.

 

AE – Por que motivos foi presa?

MCM – Eu estava presa porque colaborei com as brigadas revolucionárias nalgumas ações, tinha uma casa em meu nome onde se refugiavam algumas pessoas que viviam na clandestinidade e colaborei com boleias para ações de brigadas revolucionárias.

 

AE – Pertencia ao grupo de católicos que se opunham ao regime. Essa determinação implicava a rutura com a Igreja Católica?

MCM – Não necessariamente. E muitos de nós não fizemos rutura com a Igreja. Eu, por exemplo, ia à missa todos os domingos e estava completamente integrada. Alguns sim, mas não por razões de necessidade para a sua ação política.

A rutura ou desencantamento com a Igreja institucional aconteceu de uma maneira natural porque os cristãos viviam muito entristecidos pelo facto dos frutos maravilhosos do Concílio Vaticano II não terem atingido a Igreja Católica em Portugal de uma maneira manifesta. Houve bolsas muito interessantes, de padres e leigos, que viveram a grande abertura que foi o Concílio e as suas orientações, em que participei, e que tiveram uma grande importância na nossa consciência política. A mesma importância tiveram as encíclicas de João XXIII e de Paulo VI, que apontavam para a grande importância do desenvolvimento humano, da democracia e da vivência em liberdade, o que era incompatível com o que acontecia em Portugal. Afastaram-se, por isso, da Igreja de uma maneira muito entristecida e dorida…

 

AE – Vencidos do catolicismo?

MCM – Não sei se vencidos… Vencedores, não, de certeza, mas muito entristecidos. Muitos deles não perderam a fé, mas afirmaram a grande tristeza em relação à cumplicidade que a hierarquia da Igreja mantinha quer ao fascismo quer à guerra colonial.

 

AE – Qual o papel dos “católicos progressistas” na construção de uma consciência política nova e de participação ativa?

MCM – Os católicos da altura foram verificando que o que se vivia enquanto cidadãos era insustentável e insuportável para a sua consciência cristã. As liberdades eram coatadas, não havia direito à informação, que era completamente vigiada e cortada pela censura; não havia o direito à reunião e, quando nos queríamos reunir para questões mais melindrosas tinha de ser na clandestinidade. Um grupo cada vez maior de cristãos foram tomando consciência destas realidades e ligando-se entre si.

Houve pessoas e marcos de referência. Mas a tomada de consciência da situação em que se vivia aconteceu em grupo. Aí debatíamos e combinávamos como ajudar outros cristãos a tomar consciência destas realidades, concertávamos estratégias para ações concretas… E estas ações foram cada vez mais importantes à medida que nos aproximávamos do 25 de abril. Aumentava o número de participantes, de vários quadrantes e com várias sensibilidades políticas que tomavam medidas quer pessoais quer em grupo para dar volta à situação.

 

AE – A divulgação de uma nova consciência política gerou-se em torno de pensadores e publicações. Qual a importância do “Tempo e o Modo”?

MCM – Eu não estive muito ligada ao “Tempo e o Modo”. Era de uma geração um pouco mais nova. Foram iniciadores de um pensamento muitíssimo aprofundado e aberto ao que se pensava lá fora e ao que de melhor se pensava cá dentro. Foram intelectuais que abriram um grande clarão na Igreja “cinzenta” a que estávamos habituados.

Eu fui uma leitora do “Tempo e o Modo” e ainda tenho alguns exemplares que guardo religiosamente.

Depois, saiu um jornal que se chamava “O Direito à Informação”. Denunciava o que se passava no país, com a ditadura, a ausência de liberdades, o aumento da pobreza, da emigração, pela qual as pessoas fugiam à miséria extrema que acontecia no país. Foi um meio de luta contra a guerra colonial, que tinha envolvido muitos cristãos desde 1964.

O “Direito à Informação” durou certa de 8 ou 9 anos, tendo saído 18 exemplares, o que é muito porque se tratava de uma publicação feita na mais rigorosa clandestinidade, escrita à máquina por três mulheres.

 

AE – E Cadernos GEDOC, ligados ao padre Felicidade Alves?

MCM – Os Cadernos GEDOC foram notáveis no contributo para a consciencialização de muitos católicos. Eles adotaram uma estratégia muito interessante para fugir à censura. Cada um tinha um nome diferente, normalmente nomes bíblicos: um chamava-se Judite outro um nome diferente da Bíblia. O padre Felicidade teve uma grande importância aí e muitos leigos ligados a ele. Posteriormente começou a editar-se o “Boletim Anti-colonial” que também teve muito importância na divulgação do que se passava nos palcos de guerra.

 

AE – Foi uma dos “101 católicos” que assinou o “Manifesto”, em 1965?

MCM – Não me recordo! Naquela altura havia muitos documentos que era assinados e não me recordo se o meu nome está no “Manifesto dos 101 católicos”. Por vezes não convinha assinar porque estávamos ligados a outro tipo de iniciativas e não era bom que figurássemos entre essas assinaturas. Havia estratégias de defesa de nós próprios e das ações em que estávamos implicados para não “espantar os pardais”.

 

AE – Que importância teve o padre Alberto Neto, uma das lideranças católicas da época a lutar não por “outra Igreja” mas por uma “Igreja outra”, como dizia?

MCM- De facto, queríamos uma Igreja outra, como o padre Alberto dizia, que fosse mais fiel à Evangelho de Jesus e uma presença de Jesus consentânea com essa mensagem.

O padre Alberto Neto foi um dos muitos clérigos formidáveis dessa altura. Lembro-me de tantos que foram influenciadores da juventude e outros setores que tiveram um papel determinante na tomada de consciência de jovens e não jovens para a situação em que se vivia.

 

AE – Particularmente marcante no seu percurso de luta pela liberdade foi a participação na vigília da Capela do Rato. Como foi preparada e porque foi a Maria do Conceição Moita a ler a declaração que anunciava a realização de uma vigília, em jejum, durante 48 horas?

MCM – Os acontecimentos da Capela do Rato foram preparados com grande rigor. Tinha havido uma iniciativa na igreja de S. Domingos, dois anos antes. Mas tinha sido um episódio efémero e com pouco impacto. O que levou a pensar numa outra ação, no interior da Igreja mas aberta a não cristãos, que tivesse mais impacto quer do ponto de vista eclesial quer político.

Um grupo de seis pessoas decidiram dar a cara para que essa ação fosse realizada. Escolheu-se a capela do Rato não por causa do padre Alberto Neto, mas por ser um “antro” onde a mensagem evangélica era proclamada e vivida de uma maneira muito intensa por uma pequena comunidade.

Havia um ambiente que nos chamava para o melhor de nós próprios enquanto cristãos. O padre Alberto fazia umas homilias notáveis. A PIDE estava sempre a assistir, mas nunca conseguiu prendê-lo porque, apesar de fazer a denúncia clara das situações que se viviam em Portugal, mantinha uma linguagem sempre próxima do Evangelho do dia. E por isso não podia ser acusado de intervenção política. Ele proclamava a mensagem do Evangelho, apenas.

Estávamos todos presentes na missa vespertina de sábado, dia 30 de dezembro de 1972, celebrada pelo João Seabra Dinis. No fim eu dirigi-me aos microfones dizendo aos presentes que nos queríamos comprometer a ficar dois dias em jejum completo e em greve de fome, em solidariedade com as vítimas da guerra, como protesto contra situação de guerra que se vivia em Portugal e contra a ausência de tomadas de posição da hierarquia católica condenando a situação da guerra.

Os acontecimentos da Capela do Rato tiveram muito impacto. Foram uma pedrada no charco muito grande, sobretudo pela possibilidade de discussão e debate que aconteceram durante todo o tempo, pela oração e pela enorme participação que teve.

 

AE – A entrada da política e as prisões que fez aumentaram a repercussão dos acontecimentos?

MCM – De facto, muitas pessoas foram presas, algumas sem sequer estar ligadas aos acontecimentos, nomeadamente muitos jovens.

Eu estranhamente não fui presa. E é impossível que não tenham percebido que eu tinha lido aquela declaração.

Uns dias depois fui interrogada pela PIDE. Perguntaram-me se tinha estado na Capela e disse-lhes obviamente que sim, que concordava completamente com os objetivos da vigília da Capela do Rato; que estava completamente de acordo coma mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz, que esse ano tinha por título “A Paz é possível”. E eu disse aos inspetor da PIDE que “a paz é possível”, que todos tínhamos de fazer um esforço de encontrar formas e processos de resolver os conflitos entre os humanos de maneiras humanas. Tínhamos de encontrar maneiras de por fim à guerra!

 

AE – Que significado teve o facto de o cardeal Ribeiro ter condenado a invasão da Capela pela polícia?

MCM – Ele foi ultrapassado pelos acontecimentos! Pediu aos padres que celebravam missas na capela do Rato que não deixassem de o fazer, foi muito solícito em relação aos padres que foram presos depois de terem celebrado e foi à PIDE libertá-los, concretamente o padre Janela e padre Armindo. Mas não se pode opor à entrada da polícia.

 

AE – Mas reagiu negativamente. Terá sido uma afirmação de simpatia contra as causas que estavam a ser debatidas?

MCM – Não o lemos assim. Teria havido tantas possibilidades de ter tomado as suas posições noutras circunstâncias de uma maneira mais clara. Teria o seu pensamento sobre a situação de guerra e de ditadura.

O que estava em questão era uma defesa das posições da Igreja, que achava que a polícia não podia invadir uma igreja para prender cristãos. No entanto, ele foi muito cauteloso e não enfrentou o regime.

 

AE – E depois de 1974, acabou a militância de muitos católicos?

MCM – Não acabou no 25 de abril. Trazíamos uma dinâmica que era difícil de parar. Logo depois realizamos “Assembleias de Cristãos”, onde participaram todos os católicos, também os que fazíamos oposição ao regime. Nelas havia debate sobre tudo o que se pode imaginar.

A coordenar essas mesas estavam católicos como Fernando Gomes da Silva, Manuela Silva, padre João Resina, frei Bento Domingues. Pessoas que estiveram completamente presentes na continuidade da sua ação contra o regime.

Constituíram-se depois vários grupos, como os “Cristãos em Reflexão Permanente” ou os “Cristãos pelo Socialismo”, de algum modo impulsionado por mim, mas que durou muito tempo. Houve também um grupo que fundou o jornal “Libertar” que teve muita importância nos primeiros tempos da vida em liberdade, consciencializando os cristãos para se misturarem com todos os cidadãos para consolidarem a liberdade e lutarem contra o capitalismo feroz que nessa altura havia em Portugal.

 

AE – Que presença tiveram os católicos, por exemplo, no primeiro de maio de 1974?

MCM – O Nuno Teotónio Pereira fez nesse encontro, no Estádio Primeiro de Maio, uma intervenção muito interessante. Disse: “Nós os católicos estamos no meio do povo português, muito contentes como que aconteceu em Portugal. Mas que tudo está tudo por fazer! O 25 de abril foi um grande clarão que aconteceu a todos, mas agora é tempo de… mãos à obra! E deixa de fazer sentido a designação de ‘católicos progressistas’. Agora somos portugueses que vamos trabalhar pelo nosso desenvolvimento, pelo bem-estar e pela qualidade de vida de todos!”

 

AE – Os católicos permaneceram também na intervenção política?

MCM – Nós cristãos, dada a autonomia da coisa política, dividimo-nos por onde a nossa competência política achava que era justo. 

PR

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Agência ECCLESIA

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